segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Vítimas da violência voltam às aulas

Projeto Uerê trabalha com crianças que moram em favela no Rio e não conseguem aprender na escola tradicional

As aulas começam com um abraço e um sorriso, para distender os maxilares que estão crispados. A professora, que não tem mesa própria e circula entre os alunos, pergunta, um a um, como foi o dia. "Eu quase fui atropelado", diz um. Outro conta que brincou com os primos. Um terceiro prende a atenção da turma: narra como foi o tiroteio na porta de casa. Havia sido acordado por tiro no portão. "Olhei para a mão do cara e ele estava com um fuzilzão." Uma menina reclama de dor de cabeça.

Depois a turma faz alongamento, as crianças contam até dez em vários idiomas (inglês, chinês, alemão, pataxó) e, no exercício, professora e alunos discutem o planejamento diário. Toda a introdução toma quase uma hora, mas deixa as crianças prontas para o conteúdo convencional. Mesmo assim, a cada 20 minutos as atividades mudam. É para prender a atenção.

Assim começa um dia de aula no Projeto Uerê, que reúne 432 crianças na Baixa do Sapateiro, uma das favelas do Complexo da Maré, na zona norte do Rio. O método foi criado por Yvonne Bezerra de Mello, doutora em filologia e lingüística pela Sorbonne, que nos anos 1980 começou a trabalhar com meninos de rua. Pela experiência, percebeu que o método convencional de ensino não tinha apelo para crianças vítimas de violência. Yvonne ganhou o Prêmio Paz no Mundo e Cidadania, da União Européia em 2007, e apresentou proposta à Organização das Nações Unidas para Ciência, Educação e Cultura (Unesco) para que o Uerê seja adotado como política pública em áreas conflagradas. O método, que está sendo descrito em livro, será testado no Zâmbia por uma ONG sueca.

As crianças chegam ao Uerê porque não conseguem aprender na escola tradicional. Algumas têm diagnósticos de debilidade mental, dislexia, autismo porque não conseguem ler, escrever, reter novas informações. "Por causa da violência, muitas crianças não conseguem manter o foco. O olhar se perde. Se não tem foco, não tem concentração e não tem aprendizagem", diz Yvonne.

Um dos casos de diagnóstico de autismo é de um menino que dos 8 aos 13 anos ficou trancado em casa, porque a mãe ouviu que o filho seria incapaz de aprender. Um dia descobriu que o menino escrevia - aprendeu vendo televisão. Há um ano no Uerê, ele se relaciona bem com colegas e está sendo preparado para ingressar na escola em 2009, na 6ª série.

Além dos diagnósticos que não se confirmam, há os casos de bloqueio do aprendizado por violência. Na turma de Yvonne, dos 25 alunos, 19 disseram ter tido parente ou amigo assassinado ou baleado. Esses são os mais difíceis de lidar. J. tinha 6 anos quando viu o pai esfaquear a mãe. Para puni-lo, traficantes cortaram suas mãos e o assassinaram. A mãe sobreviveu, mas com seqüelas graves. O menino parou de crescer, desenvolveu problemas de visão e audição, dislexia, dores de cabeça e de estômago, além de medo constante e pesadelos. "Ele está conosco há nove anos. Já não tem problemas de escrita, aos 12 retomou o crescimento. Desenvolveu-se perfeitamente e hoje, aos 15 anos, está no nosso programa de estágio", conta Yvonne.

As turmas do Uerê são divididas em níveis, em turmas de 25 alunos e dois professores. Todas fazem os mesmos tipos de exercício, mas de acordo com seu grau de compreensão e ritmo. A conversa no início da aula tem o objetivo de deixar para trás os acontecimentos do dia anterior. Os relatos estimulam a memória e a lógica, permitem que o professor corrija a fala e trabalhe o foco. Não existe cópia. Os deveres são escritos no quadro. Fazem, no mínimo, duas redações por semana.

Estadão.

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