sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Artigo: Termos de compromisso de cessação (TCC) e seus reflexos no crime de cartel

Vivenciamos um momento de planejamento do redesenho institucional do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), que visa tornar efetiva a solução de seus problemas endógenos decorrentes não só de um inadequado desenho institucional, aliado à carência de recursos disponíveis, bem como dos problemas exógenos relacionados a questões de ordem legal, advindas de impropriedades pontuais, importação de conceitos sem adequá-los ao ordenamento jurídico, e generalização de termos, que levam a uma insegurança jurídica, em especial na seara penal econômica.

Se, de um lado, patente é a dificuldade estrutural corajosamente enfrentada pelo SBDC — derivada da existência de três órgãos distintos, que se traduz numa fragmentação da instrução processual, levando a prazos excessivos de tramitação dos casos e aumento dos custos para com o administrado —, por outro, a independência entre as instâncias penais e administrativas tem conduzido, no âmbito do crime de cartel, a uma imensa insegurança jurídica para os operadores do Direito, e em especial os interessados pela mediação do conflito.

No bojo desta tentativa de se reformular o sistema, foram estabelecidos crité­rios que deverão ser analisados para mediação entre os órgãos administrativos e as empresas por meio da celebração de TCCs(1), quer quando haja acordos de leniência, quer quando não existam, havendo política da SDE(2) no sentido de que:

(i) as propostas de TCC de pessoas jurídicas e pessoas físicas em casos de investigações de cartéis, donde presente o Acordo de Leniência, deveriam conter, ao menos:

(a) confissão de participação na prática, ao menos nos mesmos termos daqueles do beneficiário do Acordo de Leniência; (b) reconhecimento da legalidade da diligência de busca e apreensão (se aplicável); (c) obrigação de cooperação ativa na investigação (e não meramente técnica); (d) contribuição pecuniária em valor que garanta efeito dissuasório; e (e) não criação de obstáculos à persecução criminal e ações privadas de indenização.

(ii) as propostas de TCC de pessoas jurídicas em casos de investigações de cartéis clássicos com prova direta, donde ausente o Acordo de Leniência, deveriam conter, ao menos:

(a) reconhecimento de participação na prática; (b) reconhecimento da legalidade da diligência de busca e apreensão (se aplicável); (c) obrigação de cooperação ativa na investigação (e não meramente técnica); (d) contribuição pecuniária em valor que garanta efeito dissuasório; e (e) não criação de obstáculos à persecução criminal e ações privadas de indenização.

(iii) as propostas de TCC de pessoas físicas em casos de investigações de cartéis clássicos com prova direta, donde ausente o Acordo de Leniência, deveriam conter, ao menos:

(a) reconhecimento da legalidade da diligência de busca e apreensão (se aplicável); (b) obrigação de cooperação na investigação; (c) contribuição pecuniária em valor que garanta efeito dissuasório; e (d) não criação de obstáculos à persecução criminal e ações privadas de indenização.

(iv) as propostas de TCC de pessoas jurídicas e pessoas físicas em casos de investigações de “cartéis difusos”, donde ausente o Acordo de Leniência deveriam conter, ao menos:

(a) reconhecimento da legalidade da diligência de busca e apreensão (se aplicável); (b) contribuição pecuniária em valor que garanta efeito dissuasório; e (c) não criação de obstáculos à persecução criminal e ações privadas de indenização.

Ao analisarmos as propostas da Política da SDE, percebemos, inicialmente, um tratamento diferenciado entre as condutas de alto potencial danoso (cartéis clássicos) em relação ao que se denomina “cartel difuso”. Cartéis “clássicos” seriam os acordos secretos entre competidores, com alguma forma de institucionalidade, objetivando fixação de preços e condições de venda, divisão de consumidores e definição de nível de produção, atuando por meio da construção de mecanismos permanentes para alcançar seus objetivos. Já a expressão “cartel difuso”, por seu turno, seria a coordenação da ação entre empresas com objetivo similar ao do cartel clássico, mas de caráter eventual e não institucionalizado(3). No cartel clássico a regra da razão passaria a ser mitigada, passando a conduta cartelizadora a ser analisada independentemente de ponderações a respeito de seus efeitos ou de eventuais benefícios econômicos, enquanto nas infrações denominadas de “cartel difuso” haveria a necessidade da análise da regra da razão, mediante a ponderação de custos e benefícios envolvidos.

A primeira crítica a ser objeto de reflexão refere-se à distinção entre “cartel clássico” e “cartel difuso” para efeitos penais. A nosso ver, a expressão “cartel difuso” apresenta prima facie uma contradição interna, vez que é próprio da definição do cartel o elemento estabilidade, não sendo compatível com a expressão eventualidade, sob o prisma criminal, figurando como elemento constitutivo do tipo penal a estabilidade ou a permanência — o que não significa perenidade — não sendo compatível eventualidade com o próprio conceito do crime de cartel, a tornar questionável a expressão “cartel difuso”.

Cabe destacar, desde logo, que a Lei nº 11.482(4) de 31 de maio de 2007 não distinguiu a possibilidade do TCC quer quando presente, quer quando ausente, a leniência. Apesar da clareza do texto da Lei nº 11.482/07, em 4 de setembro de 2007, o Cade editou, por meio da Resolução nº 46, dispositivo vedando o TCC aos casos em que houver leniência, salvo se admitida a culpa, sendo um contrário sensu à hierarquia das normas o fato de que Resolução contrarie a própria Lei nº 11.482/07.

Segundo a política da SDE(5), nos cartéis clássicos seriam imprescindíveis co­mo condições para o TCC a confissão de participação na prática antitruste e o reconhecimento da legalidade da busca e apreensão, a legitimar a indagação: por que exigir a confissão em um termo bilateral de mediação? Por que condicionar o TCC à legitimidade da busca e apreensão por parte da empresa e/ou empresário? Se a busca e apreensão dependem de autorização judicial, por que a necessidade da legitimidade da empresa e/ou empresário? Já não seria lícita em face da autorização judicial? Será que tal sugestão tem a intenção em evitar o questionamento jurisdicional e conseqüentemente ignorar o artigo 5º, inciso XXXV da CF, que confere a qualquer pessoa o acesso ao Poder Judiciário no caso de lesão ou ameaça de lesão a direito?

Além de tais questionamentos, inconstitucional, a nosso ver, a condição do item “e” ao permitir o TCC apenas se houver o compromisso de não se criarem obstáculos à persecução criminal, a justificar a indagação: qual o sentido de tal condição? Abrir mão do direito constitucional de defesa no âmbito criminal, com conseqüente negação do devido processo legal de cunho constitucional!!!

A proposta “ii” está revestida com os mesmos vícios explicitados acima, cabendo indagar: qual a diferença sob o prisma criminal entre os termos “confissão” e “reconhecimento de participação na prática”? Note-se, aliás, que no item “iii” a exigência de reconhecimento de culpa não é “conditio sine qua non” quando se tratar de pessoas físicas, permanecendo válidas as nossas críticas relacionadas à legitimidade da licitude da busca e apreensão e à vedação a criação de obstáculos à persecução criminal.

Se observarmos atentamente a proposta “iv”, verificaremos um tratamento diferenciado para os casos de “cartéis difusos”, donde apesar de questionável a necessidade de se validar a busca e apreensão e da criação de obstáculos à persecução criminal, não há a exigência da confissão e nem do reconhecimento da participação na prática.

A nosso ver, imprópria é a exigência por meio do termo “confissão” ou “participação na prática do fato” como requisito para qualquer condição para a assinatura do TCC, colocando em xeque a própria eficácia do relevantíssimo instituto do TCC, vez que ao condicionar a sua aceitação ao reconhecimento da existência e participação dos fatos considerados como prática de cartel, em face da absurda independência criminal e administrativa, difícil se torna a resolução dos conflitos, por meio da mediação, não se podendo abrir mão de tão importante instituto, sob pena de indefinido procedimento administrativo, assim como de inúmeros e morosos questionamentos jurisdicionais, devendo se fomentar a resolução do conflito de forma bilateral, com base na lei e preferencialmente fora do âmbito jurisdicional, já tão atolado de processos administrativos.

A introdução do conceito do termo “confissão”, aliás, ao que parece, foi uma clara importação da ICN(6), a qual considera o reconhecimento de culpa como requisito chave para a celebração de TCCs, já que segundo a ICN, o reconhecimento (de culpa ou de participação), na prática, forçaria outros participantes do cartel a considerar fazer o mesmo, além de dar notícia ao público e às vítimas do cartel a respeito da conduta ilícita na qual o investigado reconheceria sua participação.

A nosso ver, o Direito Penal não pode ter os mesmos fins desejados pe­lo ICN supracitados. Se, de um la­do, faz todo o sentido a preocupação dos órgãos antitruste brasileiros em equiparar a figura do leniente à figura da empresa e/ou do empresário que ultimam o TCC, com o intuito de não desestimular os lenientes ao Programa de Leniência, de outro, possível substituir a expressão “confissão” por “colaboração”, quer por parte do leniente, quer por parte da empresa e/ou empresário, sendo um passo importante para uma maior aproximação entre as esferas penal e administrativa, no âmbito da temática antitruste, e destacando que quanto ao obstáculo do revanchismo contra o leniente já há previsão no TCC acerca da impossibilidade de se proporem ações de indenização contra o mesmo. Nesse ponto, importante reiterar que além do termo “confissão” não estar previsto na Lei nº 11.482/07, diversas outras normas tais, como a Lei nº 9.034/95 (Crime organizado) e a nº 9.613/98 (Lavagem de Dinheiro), consagraram o termo “colaboração” como condição para o instituto da delação que, inobstante distinto da leniência, detém vasos comunicantes, sendo inquestionável que os termos “confissão” ou mesmo “reconhecimento na participação na prática do fato”, em face da ausência normativa de dependência entre as searas administrativa e penal, conduz a instrumentalizar a confissão em desfavor do próprio confesso na seara criminal, tornando-se um claro desincentivo à mediação.

Essa, aliás, é a posição de Sheridan Scott(7), ao explicar que, em seu país, os membros de cartéis que são os primeiros a relatar um delito do qual não se tem conhecimento, ou em casos que apesar de se ter conhecimento pode-se fornecer provas adicionais, se “colaborarem” efetivamente e cessarem a prática, recebem, entre outras coisas, imunidade criminal para este delito.

No Brasil, ao que se sabe publicamente, nenhum TCC foi ainda firmado em caso originário de leniência e quando ainda pendente um procedimento investigativo criminal, a justificar uma melhor reflexão acerca do condicionamento da exigência do “reconhecimento de culpa” por parte da empresa e/ou empresário, devendo-se, de um lado, ponderar-se pela necessidade à tutela do Programa de Leniência e do leniente, sem esquecer-se, entretanto, de que o instrumental da mediação do TCC pode ser uma das melhores vias de resolução do conflito em um efetivo Direito Administrativo Sancionador, não havendo dúvida de que a ausência de norma de dependência entre os órgãos administrativos e criminais permeia o acordo no instante da decisão por assinar ou não um TCC na área administrativa.

Todas essas dificuldades — naturais em face do recente instituto — são um claro resultado da ausência de relação interna e externa entre as instituições de Direito Administrativo (internamente), e do Direito Penal (externamente) que, ao invés de reduzirem as incertezas, diminuindo os custos de transação e tornando mais eficiente o sistema, fazem justamente o contrário, deixando os agentes privados como o personagem Josef K. de Franz Kafka, tendo a esperança, em face da serie­dade dos membros que compõem os órgãos do SBDC, que possível seguir o primado maior da busca do direito que, segundo os ensinamentos do professor Miguel Reale, se caracteriza pelo “diálogo” e especialmente pelo “bom senso”.

Notas

(1) Termo de Compromisso de Cessação.

(2) Política da SDE – Termo de Compromisso de Cessação de Prática em Cartel, de fevereiro de 2008. Acessível em www.mj.gov.br.

(3) Conceitos estabelecidos no Processo Administrativo n. 08012.002127/2002-14, Cartel das Britas, trecho do voto do conselheiro-relator Luiz Carlos Delorme Prado.

(4) Alterou a redação do artigo 53 da Lei 8.884/94.

(5) Política da SDE – Termo de Compromisso de Cessação de Pratica em Cartel, de fevereiro de 2008. Acessível em www.mj.gov.br.

(6) International Competition Network.

(7) Presidente do setor de concorrência Competition Bureau Canadá e da ICN, em palestra para a Fiesp, ocorrida em 12 de maio de 2008. A palestra pode ser acessada no http://www.internationalcompetition network.org/media/library/News/Sheridan_Scott_ Portguese_speech.pdf

Eduardo Reale Ferrari
Advogado criminalista, sócio do Escritório Reale e Moreira Porto Advogados Associados, professor doutor da Faculdade de Direito da USP e professor doutor da Faculdade de Direito da PUC/SP

FERRARI, Eduardo Reale. Termos de Compromisso de Cessação (TCC) e seus reflexos no crime de cartel. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 9-10, set. 2008.

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