sexta-feira, 17 de outubro de 2008

STF decidirá se reincidente pode ter punição agravada

Supremo Tribunal Federal reconhece repercussão geral do debate sobre a constitucionalidade da reincidência, e vai se pronunciar a respeito

Uma questão bastante controversa do Direito Penal será analisada em breve de maneira definitiva pelo Supremo Tribunal Federal (STF): a reincidência como agravante da pena. Ou seja, os ministros vão decidir se a pena de um condenado pode ser aumentada pelo fato de ele ter antecedentes criminais, como ocorre hoje. Esse tema será objeto de reflexão no STF porque os ministros da corte reconheceram, no início deste mês, a repercussão geral da matéria em dois recursos extraordinários contra decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Segundo o ministro Cezar Peluso, relator dos dois casos, a corte deve refletir sobre a punição criminal de alguém “pelo fato de já ter sido anteriormente condenado”.

O tema é espinhoso, apesar de, aparentemente, soar óbvio que um indivíduo condenado anteriormente, ao sofrer uma nova condenação, tenha sua pena agravada – afinal, já teve uma “segunda chance”. Mas é aí que reside o problema: não há outra chance. “A passagem do sujeito pelo sistema tem um efeito criminogênico. Ao invés de recuperar, de reabilitar o sujeito, a prisão o faz piorar, torna-o assocializado”, diz o advogado Juarez Cirino dos Santos, professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

A reincidência a que o criminalista paranaense se refere é a reincidência real, aquela em que o indivíduo cumpriu a pena anterior. O Código Penal, contudo, não exige o cumprimento da pena para que se considere o sujeito reincidente. O trânsito em julgado de uma sentença que tenha condenado o indivíduo por um crime anterior basta para que esteja configurada a reincidência, caso ele cometa um novo crime. É a reincidência ficta. “A reincidência ficta é um indiferente penal, não significa nada. O trânsito em julgado de uma condenação anterior indicaria uma presunção de periculosidade, mas esse é um conceito carente de conteúdo científico”, afirma Cirino dos Santos.

A questão fica ainda mais difícil porque a reincidência não só funciona como agravante genérica da pena, mas também tem diversos efeitos que complicam a situação do reincidente, como o impedimento à aplicação de pena alternativa e o aumento do prazo para a concessão de livramento condicional.

Dupla punição?

Uma das alegações dos que se insurgem contra a constitucionalidade da reincidência é a de que o instituto feriria um dos princípios norteadores do ordenamento jurídico: o de que ninguém pode ser julgado e punido duas vezes pelo mesmo fato (conhecido no meio jurídico como non bis in idem).

É o que defende Cirino dos Santos, que considera a reincidência inconstitucional. “Ela representa, sim, uma dupla punição. Se o sujeito já cumpriu a pena por um crime anterior, já ‘pagou’ sua dívida com o Estado”, garante o advogado. Ou seja, o fato de um crime pelo qual o indivíduo já foi punido pesar para agravar uma nova pena, configuraria a dupla punição. Cirino dos Santos vai ainda mais longe. Para ele, a reincidência deveria funcionar de maneira inversa, como atenuante, colaborando para a diminuição da nova pena. “Afinal, a função ressocializadora da prisão não foi cumprida. A reincidência é um atestado do fracasso do Estado”, completa.

Já o advogado René Ariel Dotti, também professor da UFPR, defende que o instituto é constitucional. “Não há inconstitucionalidade, porque o indivíduo não está sendo julgado duas vezes pelo mesmo crime. Trata-se de um evento do passado que influencia no aumento da pena, da mesma forma que influenciam para a redução da pena os bons antecedentes”, explica Dotti.

Assim como Dotti, o Supremo, até agora, vem decidindo que não há violação àquele princípio. O informativo do STF nº 476, de agosto do ano passado, afirma que o instituto da reincidência foi recepcionado pela Constituição. “A majoração da pena resultante da reincidência não configura violação ao princípio do non bis in idem”, relata o documento.


Opinião - A reincidência choca-se com o Estado Democrático

A reincidência é um resquício do modelo de direito penal próprio do fim do século 19. Influenciado pelos avanços da biologia – particularmente, pelo darwinismo – este modelo de direito penal via no ato criminoso um sintoma de periculosidade do agente. Derivavam daí as metas político-criminais do Estado, voltadas a “zerar” esta periculosidade.

Traçava-se, naquele tempo, um paralelo entre o direito penal e ciências como a medicina, de modo a dar-se ao direito penal um suposto caráter científico, próprio das ciências da natureza, que o direito, enquanto discurso metafísico, não possuía. A preponderância das ciências da natureza sobre as ciências culturais, no fim do 19, forjou o modelo de pensamento conhecido como positivismo-naturalista.

Neste ambiente, a reincidência seria sintomática de que o “doente” delinquente não se curara com a primeira dose do “remédio” dado pelo estado, a sanção.

Neste passo, a dose deveria ser aumentada. Este foi o discurso “perigosista” que deu base ao instituto e até hoje alicerça a utilização da reincidência como agravante da pena.

Hoje, no marco de um direito penal próprio de estados democráticos de direito, ninguém pode ter sua pena aumentada por um certo modo de “ser”. Ser perigoso é rótulo dado pelo estado ao agente captado pelo sistema penal.

Todavia, se democracia é respeito à diferença, ninguém pode ter sua pena aumentada pelo que é. Cada um tem o direito de ser como é, como fruto do princípio da dignidade da pessoa humana, de raiz constitucional. As pessoas respondem pelo que fazem, não pelo que são.

Nestes termos, a reincidência choca-se com a expressão plural de um estado democrático de direito e não deve basear aumentos de pena. Trata-se de um instituto cujos efeitos devem ser restringidos no direito penal. Há de se considerar sua importância para a maneira como se executa a pena, sobretudo num processo de ressocialização consensuada com o sentenciado (a mais recente versão da prevenção especial positiva). Mas não deve dizer nada sobre quanto é a pena devida, para preservação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

No momento em que se aceita o aumento de pena por taxar-se alguém como “mais perigoso”, o estado impõe um “modo ideal de ser” intolerável num ambiente de compromissos com a pluralidade, a autonomia do ser humano e seu livre desenvolvimento.

Fábio André Guaragni, Promotor de Justiça no Paraná e professor de Direito Penal.


Gazeta do Povo.

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