quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Rede de policiais: experiências compartilhadas

*Colaboraram Marina Lemle, Bernardo Tonasse, e Graciela Bittencourt


Emoção e orgulho de contar suas histórias. Foi o tom das apresentações e debates realizados no primeiro “Workshop da Rede Brasileira de Policiais e Sociedade-civil (RPS Brasil): práticas e saberes policiais”, realizado entre os dias 17 e 19 de setembro, no Rio de Janeiro. Durante três dias, policias de todo o país relataram suas experiências, anseios e dúvidas num encontro cujo objetivo foi compartilhar diferentes pontos de vista sobre segurança pública.

Como afirmou o major Sérgio Flores, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, em sua apresentação sobre gestão compartilhada da segurança pública na fronteira Brasil/Argentina, “somos todos uns inquietos e, como tais, não conseguimos ficar parados.”

E parece que a inquietude é o motor que move esses profissionais e permite que levem à frente idéias e projetos para tentar melhorar as corporações e sua relação com a comunidade. Na opinião de Sandoval Bittencourt, superintendente do Sistema Penal do Estado do Pará, encontros como esses possibilitam a troca de experiências positivas e que são resultado da iniciativa policial.

“O workshop valoriza a produção de conhecimento dentro das corporações. É isso que está faltando no país, a própria instituição pensando e reavaliando suas práticas”, analisa. “Esse formato permite a socialização do conhecimento e a discussão franca dos temas”, completa.

Uma questão importante foi percebida ao longo dos três dias de trabalho: a falta de continuidade de excelentes propostas já que a execução das ações está vinculada ao empenho pessoal do seu formulador.

“No momento em que este policial deixa o cargo, a ação deixa de existir. Assim, um grande desafio é como institucionalizar estas ações, fazer com que elas deixem de ser periféricas em suas corporações”, afirma Vanessa Cortes, coordenadora da RPS Brasil.

A delegada Verônica Azevedo, da Polícia Civil de Pernambuco, concorda e lamenta o fato de que grande parte das experiências apresentadas não tenham tido continuidade, apesar de terem sido bem-sucedidas. “Sob diversas e inimagináveis alegações dos ‘comandos’, ou simplesmente pelo uso de argumentos – como “por necessidade de serviço” - que interromperam o fluxo de trabalhos sérios, competentes, legitimados pelo consentimento social e com comprovados resultados de eficiência e eficácia”, avalia.

Para Sandoval, no entanto, essa é uma questão que pode ser resolvida com a formação de uma massa crítica dentro das corporações e, nesse sentido, a atuação da Rede é essencial. “As instituições são formadas pelos seus indivíduos e se materializa em cada um. Enquanto não tivermos uma massa crítica, é importante a existência desse espaço e de iniciativas como essa”, afirma.


Saber feito de vivências


Especialista em segurança pública, a antropóloga Jacqueline Muniz costumava correr da polícia em passeatas e shows de rock. Hoje, a pesquisadora dá aulas para policiais e, junto com o tenente coronel Antônio Carlos Carballo Blanco, da Polícia Militar do Rio de Janeiro, é responsável pela coordenação acadêmica da RPS Brasil.

Presente na mesa de abertura do seminário, Jacqueline afirma que o saber policial é feito de vivências. “A razão de ser dessa oficina é construir esse saber, através dos casos de cada um. Este é um espaço de valorização e construção política desse saber. O protagonismo é de vocês”, afirmou.

Também presente na abertura do evento, Carballo Blanco contou uma “conversa metafísica” que teve com o filósofo e poeta francês Gaston Bachelard (1884-1962) sobre suas angústias com as altas taxas de criminalidade e os descaminhos com que a política de segurança pública vem sendo conduzida em todos os níveis de governo.

O texto “psicografado” por Carballo, publicado em seu blog agenda da cidadania e lido para os alunos, tem trechos contundentes, como a passagem abaixo, destacada pelos alunos na discussão:

“Meu caro, as expressões dogmáticas que governam o modo de fazer polícia no Brasil e, portanto, o modo de se fazer política, castra qualquer possibilidade de inovação e de ruptura com a inércia institucional.”

Na visão de ‘Carballo-Bachelard’, o modelo adotado pelo Brasil de funções policiais bipartidas ensejou a configuração de dois pólos de atividades policiais. O primeiro, exercido nas ruas pela Polícia Militar, está baseado no paradigma militarista e o segundo, exercido no cartório pela Polícia Judiciária, está baseado no academicismo jurídico.

Para o coronel-filósofo, é preciso libertar as academias e os centros de formação policial “dos grilhões imponderáveis de verdades e saberes tidos como absolutos e incontestáveis”.

Mas a filosofia se limitou à abertura do encontro. Os casos apresentados pelos policiais retrataram experiências exitosas bem práticas que transformaram a vida desses profissionais da segurança. Orgulhosos de seu trabalho, homens e mulheres se emocionaram ao relatar projetos que fazem a diferença na relação entre polícia e sociedade.

E essa tendência ficou clara pelo sucesso de programas que aproximam as corporações policiais à comunidade principalmente no interior dos estados. “Chamou a atenção a receptividade que as cidades do interior têm para a implementação de ações inovadoras em segurança pública, inclusive com a intensa participação da sociedade e das autoridades locais”, conta Vanessa.

Projetos como o da Delegacia de Atendimento à Mulher em Ação (Dama), na pequena Aquidauana, no Mato Grosso do Sul; ou o projeto de teatro na Ilha de Mosqueiro, no Pará; ou ainda o programa Polícia da Família, no Acre, comprovam que a aproximação da polícia com a comunidade dá bons resultados.

A agente da Polícia Civil do DF, Deise Luci de Andrade, apresentou o Programa de Segurança Comunitária do Distrito Federal que tem o objetivo de sensibilizar e mobilizar a comunidade para as questões relacionadas à segurança pública. Deise, que abriu sua apresentação com o hino da Polícia Civil do DF, disse que logo que entrou para a corporação se identificou com o policiamento comunitário, pois acreditava que era o verdadeiro papel da polícia. “Ser policial não é só solucionar crimes. É serviço público, o que significa estar dentro da comunidade e servi-la de todas as formas possíveis”.

Para Cleise Delfino da Costa, capitã da Polícia Militar da Bahia, é essencial que as instituições aceitem a educação continuada como um processo inerente às mudanças externas e internas que se mostram necessárias. Deise é coordenadora do Programa Organizações Aprendentes (Proa), que tem o objetivo de identificar talentos e idéias dos policiais como forma de incentivar a gestão participativa na polícia. “A experiência foi muito proveitosa e surpreendente, porque nós acreditávamos que encontraríamos muita resistência entre os praças e foram exatamente eles que abraçaram a iniciativa”, contou.

Ainda na linha de estimular a aquisição de conhecimento entre os policiais, foi apresentado Pensadorespm, formado por oficiais e praças da Polícia Militar de São Paulo. Criado em 2002 com o objetivo de repensar a formação do policial e buscar uma formação mais humanizada, o grupo hoje é composto por um doutor, oito doutorandos, 15 mestres e 20 mestrandos.

O coordenador do programa, tenente Ronilson de Souza, da Polícia Militar, aponta para a necessidade de uma nova cultura nos processos de seleção, formação e treinamento do policial militar. Um exemplo que ele usou foi a formação diferenciada dos policiais de acordo com as características do local onde ele atuará. “Eu percebi que nós, policiais, tínhamos vontade de ir para a faculdade estudar, mas encontrávamos dificuldades dentro da estrutura da polícia. O Pensadorespm foi criado para superarmos essas dificuldades”, contou.

Na opinião da delegada Verônica Azevedo, falta uma política de valorização do policial dentro das corporações e o workshop representou uma oportunidade ímpar de compartilhar experiências de áreas diversas, com policiais de todas as regiões do país. “Ficou claro que o trinômio viaturas/armas/coletes é insuficiente para atender a enorme demanda da defesa social. Essas ferramentas devem ser atreladas a práticas inovadoras, que valorizem o policial e tenham a legitimidade da comunidade”, ensina.

Verônica é coordenadora da Unidade Policial da Mulher (Unipomul), que defende a adoção de medidas de prevenção, informação e conscientização da população e da polícia visando à redução dos índices de violência doméstica e à melhoria da atenção às vítimas de agressão.

Para o coronel reformado Luiz Antônio Brenner, da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, mesmo com realidades tão diferentes, todos os trabalhos tiveram um fio condutor comum: o rompimento com o modelo tradicional de se fazer polícia. “O objeto da polícia não é só o crime. Tem-se a idéia de que o bom policial civil é só o investigador; que o bom PM é só o cara das operações... Esse modelo de pensar desconsidera tudo que está relacionado ao fenômeno da violência, se preocupando apenas com a dimensão individual do problema”, conclui.

Brenner, que hoje faz parte da ONG Guayi, defende que questões como planejamento, análises, e articulação e integração com outros atores têm que fazer parte da formação do policial. “Quando se fala de qualificar a polícia, só se fala de cursos para se tornar um bom técnico. É preciso qualificar o policial no sentido político”, defende.

O Workshop “Práticas e saberes policiais” foi apenas o primeiro de muitos que ainda virão. Se depender da equipe que coordena a RPS Brasil, os encontros acontecerão anualmente a exemplo do que ocorre com a Rede Latino-americana. E, quem sabe, aceitar o desafio colocado por Sandoval Bittencourt, superintendente do Sistema Penal do Estado do Pará: “Essa experiência tão enriquecedora pode ser ampliada trazendo outros atores e outros níveis hierárquicos, o que, certamente, vai acontecer com o tempo”, aponta.

As atividades realizadas pela Rede podem ser acompanhadas no blog Policia e Sociedade, onde estão disponíveis artigos, reportagens, documentos, temas para debate e onde você pode assinar o boletim InterCÂMBIO.

Comunidade Segura.

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