sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Entre a redução de danos e o negócio da reabilitação

“O Direito Penal, que devia ser residual, acaba sendo o único instrumento com o qual os Estados resolvem seus conflitos. Os relacionados à droga inclusive.” Essa afirmação de Monica Cuñarro, coordenadora do Comitê Científico Assessor em Matéria de Controle de Tráfico Ilícito de Entorpecentes, Substâncias Psicotrópicas e Criminalidade Complexa, do governo argentino, dá o tom da inauguração das VII Jornadas Nacionais de Redução de Danos e Políticas Públicas em Drogas, nos dias 3 e 4 de outubro, na Associação Médica Argentina (AMA), em Buenos Aires.



Monica defendeu que o Direito Civil ou Tributário podem ser mais adequados para questões que hoje são levadas a tribunais penais, entre elas a posse de drogas para consumo, que o Comitê e o governo argentino defendem que seja despenalizada.



Organizadas pela Associação Argentina de Redutores de Danos (Arda) e pelo Centro de Estudos Avançado em Dependência de Drogas e Aids (Ceads), da Universidade de Rosário, as Jornadas tinham como objetivo juntar aportes para uma nova política de Estado com enfoque em direitos e para a próxima Assembléia Geral da ONU, em 2009. O encontro aconteceu uma semana antes da Conferência realizada pelo Comitê Científico Assessor, no Colégio dos Advogados de Buenos Aires.



O evento contou com um público tão heterogêneo quanto as mesas nele compostas. Membros do governo, parlamentares, organizações da sociedade civil, advogados, assistentes sociais, altos funcionários do Poder Judiciário e do serviço penitenciário, profissionais da saúde e militantes em reforma de política de drogas falaram da teoria através de relatos de práticas alternativas à doutrina proibicionista para tratar o uso de drogas.



O negócio da reabilitação



Entre as conseqüências negativas mais mencionadas da lei argentina atual, datada de 1989, quando houve o marco da política de estreitamento aos Estados Unidos do ex-presidente argentino Carlos Menem, esteve a multiplicação de clínicas particulares de reabilitação de supostos viciados em drogas.

Yago Dinella, coordenador do Programa de Saúde Mental e Direitos Humanos do Ministério de Segurança, Justiça e Direitos Humanos da Argentina, critica a herança manicomial das políticas de saúde e afirmou que o grande beneficiário da política estatal de criminalização das drogas é o sistema terceirizado de atenção ao usuário. “Como se cobra pela vaga e não pelo tratamento, o usuário de drogas se torna uma mercadoria”, denuncia.



Para Dinella, o Estado neo-liberal protegeu tanto o direito de empresas – de saúde, inclusive – que deixou de garantir esse direito à população. “É necessário que o foco esteja no direito à saúde e não no direito a cobrar por ela.”



“Quando falamos de enfoque em direitos humanos, estamos falando que uma política deve ser ordenada por seus princípios, não que estes devem ser elementos agregados a ela”, afirma Carlos Herbón, do Centro Carlos Gardel de atenção a pessoas com problemas relacionados à droga, projeto vinculado ao Hospital de Ramos Mejía e executado pela Arda.



Herbón falou de sua experiência no Centro, que atende sem hora marcada como forma de estimular a procura voluntária pelo serviço. “Atendemos pessoas que têm um problema com o uso de drogas. Isso que dizer que consideramos que há usuários que não os têm”, agregou.



Juventude na agenda



As Jornadas deram lugar também aos mais afetados pela ausência de políticas públicas oficiais de redução de danos: pessoas privadas de sua liberdade, entre elas jovens internos de unidades do sistema.



Gabriel Lerner, diretor nacional de Direitos e Programas para a Infância, a Adolescência e a Família, fala sobre o relatório divulgado no dia 7 de outubro pelo governo, Unicef e a Universidad Nacional de Tres de Febrero.



Segundo o documento, 71% dos adolescentes que fazem parte do sistema juvenil argentino estão privados de liberdade. “Muitas vezes os juízes confundem a aplicação de penas privativas de liberdade com tratamento e demandam que o adolescente seja internado em comunidades fechadas”, critica Lerner.



“Os jovens flagrados em posse de substância proibida para o consumo são tratados como delinqüentes pela sociedade e pelos meios, ainda que a lei diga o contrário. Ou seja, não basta uma mudança legal, mas também cultural”, afirma.

Gustavo Hurtado, presidente da Arda, destaca que a perspectiva trazida pela Secretaria de Infância, que debate a política de drogas de acordo com seu impacto sobre adolescentes internos no sistema, é parte de um processo que vai no sentido de proteger os direitos da criança.



Hurtado também elogia a atuação do Comitê Científico Assessor. “Fico surpreso ao ver que há uma mudança dentro do governo no sentido de mudar a abordagem da política de drogas, embora acredite que o órgão seja incompatível com o Sedronar” (secretaria criada em 1989, que coordena políticas públicas de drogas e tem abordagem proibicionista).



O presidente da Arda afirma que a primeira aspiração da organização “é uma mudança na lei de drogas, para que o consumidor deixe de ser penalizado, e em seguida a inclusão da redução de danos como política de Estado.”



Comissão



Em 2009, as Nações Unidas voltarão a discutir a política de drogas adotada internacionalmente que se baseia na repressão da produção e criminalização do consumo. Declarada há dez anos pela organização, a política de "guerra contra as drogas" tem sido ineficaz para combater a produção e o consumo aumenta a cada ano. De acordo com o último Relatório Mundial sobre Drogas, publicado anualmente pela ONU, 4,8% da população mundial entre 15 e 64 anos usaram drogas em 2007.



Para formular um conjunto de recomendações sobre os impactos desta política na América Latina e dar voz à região durante a revisão das metas estabelecidas na Assembléia Geral da ONU de 1998, foi criada a Comissão Latino-americana sobre Drogas e Democracia. Formada pelos ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, do Brasil, César Gaviria, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México, a comissão já realizou dois encontros, um no Brasil e outro na Colômbia.



O relatório final sobre o impacto da política de guerraás drogas na América Latina deverá ser consolidado na próxima reunião, em fevereiro de 2009. Em seguida, será apresentado mundialmente na reunião da Comissão de Drogas Narcóticas das Nações Unidas, a ser realizada em março de 2009 em Viena, na Áustria.

Comunidade Segura.

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