quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Artigo: Sobre ursos e lobos

O professor Alvino Augusto de Sá brindou-me com uma notícia que, superada a constatação que encerra quanto à falência da compaixão humana, é de grande interesse teórico. Bhubaneswar, cidade indiana distante 200 km de Nova Délhi, assistiu à prática de um delito cometido pelo analfabeto e viúvo Ram Singh Munda, 35 anos, pai de uma menina de 6 anos de nome Dulki. Munda encontrou na mata um filhote de urso e julgou que tê-lo como bicho de estimação serviria a dois propósitos nobres: salvar a vida do filhote e dar um pouco de alegria a sua filha, saudosa de sua falecida mãe. Ao fazê-lo, realizou conduta típica apenada com até três anos de reclusão. Encontra-se preso. A ursa Rani (cuja tradução em língua portuguesa é Rainha) foi alocada em um zoológico e Dulki foi levada para um orfanato estatal.

O evento tem inegável conteúdo episódico e não pode ser tomado a priori como paradigma do sistema de justiça criminal, embora se possa, de outro lado, com um pouco de cuidado, enquadrar nesse mesmo modelo à prisão de algumas furtadoras de xampu, determinados extratores de palmito ou de casca de árvores, eventuais pequenos comerciantes de substâncias entorpecentes e uma miríade de outros criminosos. Tais ocorrências, têm, assim, um efeito colateral interessante: expõem despudoradamente as contradições internas do Direito Penal.

Custo a acreditar que alguém tenha lido a história de Munda e tenha pensado consigo mesmo: foi uma decisão justa. Esse indiano levou em consideração, quando da sua decisão de adotar a ursinha, valores amplamente legitimados por grupos sociais dos cinco continentes: o amor pela filha e compaixão pelo filhote. E onde entra, nessa história, o Direito Penal? Aos olhos do sistema, Munda, ao domesticar um animal selvagem, violou um bem jurídico penalmente relevante, o meio ambiente, e deve ser punido em razão dessa transgressão. A afirmação, que dá sustento à injusta prisão em tela, merece ser melhor desdobrada.

Ela revela, primeiramente, a noção de que do Direito penal espera-se proteção social. O homem, sendo lobo do homem, precisa de um Estado que o proteja de seus concidadãos que são, em verdade, inimigos em potencial, cujo poder de destruição está temporária e instavelmente abafado pela ameaça da pena. O discurso da proteção organizou-se, então, a partir de três elementos centrais: o agressor, o bem jurídico que ele viola e o castigo que ele recebe.

A fórmula funciona razoavelmente bem (e com isso não se afirma que funciona correta ou justamente) para uma pequena porção de bens jurídicos concretos: vida, propriedade, liberdade etc. Digo razoavelmente, porque logo surgem condutas em que a necessidade de defesa por parte do Estado não se mostra tão clara, a exemplo da eutanásia e do furto insignificante. Nosso medo, alimentado pelo discurso punitivo interessadamente apropriado pela mídia, pelos políticos e até mesmo pelo Judiciário, faz com novos bens jurídicos sejam alçados à condição de penalmente relevantes. Não sendo mais tão concretos, todavia, demandarão recursos dogmáticos mais sofisticados, dentre os quais, para que não se fuja do exemplo da Índia, a antecipação da criminalização (Vorfeldkriminalisierung).

Esse palavrão traduz apenas a seguinte tática: poucas condutas conseguirão, isoladamente, lesionar efetivamente o meio ambiente. Criminaliza-se, então, determinadas ações as quais, se cometidas, presumivelmente resultarão em tal dano efetivo. Assim, por exemplo, a domesticação de filhotes de ursos. A reforçar os argumentos para que as coisas assim permaneçam, digna de nota a noção de delitos cumulativos (vai que todo mundo começa a domesticar ursinhos: não vai mais sobrar nenhum nas matas indianas...).

Com todos os elementos na cena, desnuda-se a contradição: o Direito Penal entregou-se a uma busca obsessiva de evitação de delitos: pune para evitar que outros cometam novos delitos; criminaliza condutas, cujo perigo deve ser avaliado em cada caso, para evitar dano a bens jurídicos não concretos; criminaliza condutas cujo perigo está presumido, para evitar dano a bens jurídicos não concretos; prende preventivamente para evitar que o réu se furte à aplicação de uma eventual futura pena (e caso isso aconteça, a sociedade terá uma inafastável sensação de impunidade, que afrouxará a convicção de que a lei penal deva mesmo ser observada...). Para evitar (e o emprego continuado do mesmo verbo é propositado) subjetivismos, presumivelmente perigosos para o sistema de justiça, a única categoria do delito que deve ser positivamente afirmada é a tipicidade; as demais devem ser, conforme o caso, excluídas. Com isso, cria-se um modelo que se satisfaz com a realização do injusto, despreocupado com a culpabilidade. Evita-se.

Eis o que levou à prisão de Munda (cujo nome é de uma universalidade saramaguiana): para evitar que o meio ambiente seja efetivamente lesionado, para evitar que a norma penal deixe de ser aplicada e com isso novas pessoas venham a cometer crimes, para evitar que se inaugurem discussões acerca da possibilidade concreta de um trabalhador rural analfabeto imbuído dos valores morais mais elementares ter realmente escolhido agir contra o Direito, para evitar a desconfortável pergunta: está-se com isso a evitar um mal maior para a menina Dulki? Basta, ao fim e o cabo, discursos de lado, a mera adequação típica.

E ao fazê-lo, o sistema de justiça, descansado de ter evitado tantos males sociais, protegeu-se a si mesmo, em sua cápsula discursiva, lançando um jovem pai viúvo à cadeia e uma menina órfã a um abrigo estatal. O meio ambiente, a propósito, permanece inalterado, exceção feita talvez à ursa, que, deprimida, recusa a se alimentar.

Davi de Paiva Costa Tangerino
Doutorando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, realiza pesquisa junto à Humboldt Universität zu Berlin, mediante bolsa oferecida pela Capes e pelo DAAD; é coordenador-adjunto de Relações Internacionais do IBCCRIM

TANGERINO, Davi de Paiva Costa. Sobre ursos e lobos. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 191, p. 7, out, 2008.

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