quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Artigo: Súmulas vinculantes: interpretar ou legislar? Eis a questão!

Com a chamada Reforma do Judiciário, introduzida em nosso ordenamento jurídico-constitucional pela Emenda 45/2004, criou-se o instituto denominado súmula com efeitos vinculantes.

De competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, a súmula vinculante, para ser editada, deve preencher alguns requisitos básicos expressos no art. 103-A, regulamentado pela Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Entre eles podemos citar:

• a súmula é um entendimento da maioria dos ministros do STF a respeito de alguma norma preexistente;

• a súmula será editada após reiteradas decisões no mesmo sentido.

Para confirmar a necessidade do vínculo entre o texto da súmula vinculante e uma regra jurídica determinada a ser interpretada, transcrevemos o § 1º do art. 2º da Lei 11.417, que possui redação idêntica à do art. 103-A da Constituição Federal:

“Art. 2.º (...) § 1º O enunciado da súmula terá por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão”.

Encontra-se expresso que o STF só poderá editar súmulas vinculantes que tenham por objeto normas determinadas.

Quanto à segunda exigência, urge sejam proferidas reiteradas decisões no mesmo sentido, para justificar a edição de uma súmula com força normativa capaz de vincular toda a Administração Pública. Ausente este requisito, a súmula padecerá de vício formal.

Sem uma regra jurídica determinada e reiteradas decisões, o STF não possui autorização constitucional ou legal para editar súmulas de efeito vinculante. As regras são claras e bem objetivas.

Critica-se constantemente o chefe do Poder Executivo por abusar da edição das medidas provisórias, editando-as em momentos onde não estão previstos os requisitos da relevância e urgência (art. 62, CF), situações em que usurpa a função típica do Poder Legislativo.

Agora, presenciamos a cúpula do Poder Judiciário legislando e ignorando um dos requisitos objetivos da edição da súmula vinculante presente na Constituição Federal, qual seja, o da interpretação de regra determinada.

Estamos nos referindo à Súmula Vinculante n. 11, publicada no Diário Oficial em 21 de agosto de 2008.

Em sessão plenária do dia 13 de agosto de 2008, por votação unânime, aprovou-se a seguinte redação: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”

Quanto ao requisito das reiteradas decisões, nem a Constituição Federal, nem a lei que regulamentou o instituto definem, de forma quantitativa, quantas decisões seriam necessárias para falarmos em reiteração. Desta forma, deixa-se em aberto a situação para análise a ser feita pelo próprio Supremo.

Sobre o uso das algemas, a decisão do STF citou o RHC 56.465 (1978), o HC 71.195 (1995), o HC 89.429 (2007) e o HC 91.952 (2008). Em regra, o STF discutiu temas como a fuga e a violência por parte da pessoa algemada como exceções à regra da não utilização das algemas.

E quanto ao requisito do objeto da súmula vinculante? Qual foi a regra determinada escolhida pelo STF para a constitucional interpretação?

Mencionou-se na decisão os artigos 1º, III e 5º, III, X e XLIX, todos da Constituição Federal; o art. 350 do Código Penal; o art. 284 do Código de Processo Penal; o art. 4º, a, da Lei 4.898/65 e o art. 234, § 1º do Código de Processo Penal Militar.

Além dos dispositivos mencionados na decisão do Supremo e de algumas Portarias estaduais, existem outros atos normativos tratando do tema das algemas.

O Decreto 19.903/1950, do Estado de São Paulo, regulamentou o uso das algemas por quem tenta a fuga ou repele a justa prisão com violência.

O artigo 199 da Lei de Execução Penal — Lei 7.210/84 reza que “o emprego de algemas será disciplinado por decreto federal”. Pergunta-se: foi editado algum decreto regulamentando a questão? A resposta é negativa.

A verdade é que, desde 1984 até 2008, a utilização das algemas como instrumento de repressão pelo poder público não foi substancialmente regulamentado no Brasil. A previsão de alguns atos normativos não regulamentados, verdadeira lacuna legal, deu margem para o uso arbitrário das algemas em casos concretos.

O instrumento criado para assegurar o cumprimento da ordem de prisão passou a ser um símbolo de atuação do Estado contra o crime, amplamente divulgado pelos meios de comunicação. O metal gelado das algemas lembra a frieza do tratamento normativo dado a esta importante questão até o presente momento, que tem incidência direta na dignidade da pessoa presa cautelarmente, inocente até este momento.

O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição. Não apenas no sentido físico da expressão ou literal de seus dispositivos, mas principalmente em relação às conquistas da humanidade expressas em regras e princípios com força normativa(1).

A omissão do Poder Público em dar tratamento legal para questões importantes relacionadas à dignidade humana vem exigindo do Supremo o exercício da função legislativa atípica com abrangência sem precedentes em nossa história jurídica.

Podemos citar como exemplos concretos, os efeitos erga omnes para controle difuso de constitucionalidade, dispensando a Resolução do Senado (HC 82.959-7); efeitos imediatos para o deferimento dos mandados de injunção, não ficando dependente de uma resposta do Congresso Nacional (MI 107); e agora, a Súmula Vinculante n. 11 (editada por força do julgamento do HC 91.952/2008).

A Súmula Vinculante n. 11 carrega em si o vício de inconstitucionalidade por quebra do princípio do pacto federativo, da regra da separação dos poderes. O STF está legislando para proteger um direito humano fundamental tendo em vista o descaso normativo em regulamentar a questão das algemas. Importante frisar que a súmula 11 poderia até, em tese, ser constitucional, mas desde que não contivesse o seguinte trecho em sua redação: “(...) justificada a excepcionalidade por escrito”. Não existe lei em vigor no País que traga qualquer palavra que possa admitir este trecho da Súmula 11 como interpretação. Aqui o Supremo legislou. Inovou o ordenamento jurídico com seu ato normativo e estipulou sanção civil, administrativa e penal para o seu descumprimento.

Entretanto, concordamos que não pode o guardião da Constituição ficar a mercê da regulamentação federal que nunca veio. Seria uma irresponsabilidade do STF se omitir ao julgar aviltantes situações nos casos concretos que chegam à sua porta. O magistrado do século XXI tem o dever de trabalhar com a noção de Direito Penal constitucional e assegurar sua integral observância(2).

Se o STF está certo e errado ao mesmo tempo, podemos rotular esta questão como verdadeira ponderação de valores constitucionais(3): de um lado o ser humano e sua dignidade; do outro, o Poder Judiciário legislando para suprir lacuna normativa.

A gravidade da questão não gira em torno da regulamentação da questão das algemas. O problema reside em desrespeitar as regras constitucionais do art. 2º e 103-A da CF. Esse exercício, que ultrapassa os limites da hermenêutica e assume um papel integrador e regulador, não traz licitude e legitimidade para a Súmula 11 que não interpreta, ao contrário, cria regras inexistentes e de vinculação para toda a Administração Pública.

Quem tem poderes, hoje no Brasil, para declarar a inconstitucionalidade do ato normativo consubstanciado na Súmula Vinculante n. 11?

Notas

(1) Sobre a força normativa dos princípios, ver a aula apresentada em forma de voto pelo ministro Ricardo Lewandowski, no Recurso Extraordinário 579.951-4.

(2) Sobre a relação constitucional entre a Magistratura e os princípios constitucionais, cf. Alberto Silva Franco, Código Penal e sua Interpretação, p. 60.

(3) Robert Alexy, Teoria da Argumentação Jurídica, passim.

Ivan Luís Marques da Silva
Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP, especialista em Direito Penal Econômico por Coimbra, professor na Pós-Graduação da Escola Paulista de Direito, coordenador editorial da Revista dos Tribunais e advogado

SILVA, Ivan Marques da. Súmulas vinculantes: interpretar ou legislar?; eis a questão. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 191, p. 6, out. 2008.

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