terça-feira, 7 de outubro de 2008

Artigo: Racionalização alucinatória na persecução penal

A aceitação da existência do inconsciente é muito pacífica hoje em dia pela grande maioria da sociedade. Pouco interessando a vinculação teórica ou definição correta, as pessoas acreditam que há algo de desconhecido na formação de cada um. Diante disso, é no mínimo paradoxal o fato de, invariavelmente, lermos, ouvirmos e representarmos certos comportamentos delitivos como manifestação inerente à essência do criminoso.

Ora, desde que Freud assinalou que a mente dos homens não pode ser totalmente conhecida, visto que para além da consciência existe algo inconsciente atuando no agir e no pensar, provocou um “descentramento do sujeito” (Birman, 2003, p. 08). E isso quer dizer que não é possível afirmar absolutamente que um comportamento está relacionado com a natureza da pessoa, pois a pessoa em si não pode se dar à representação já que, entre outras coisas, o consciente não consegue acessar o inconsciente – justamente porque é inconsciente não pode se dar à consciência. Esse inconsciente que constituí cada ser humano apresenta-se, então, como um vazio cheio de algo – algo indeterminado e indeterminável, porque sempre há restos incapituláveis, incompreensíveis, pela consciência.

Se depois da psicanálise admitimos a existência de um inconsciente, admitimos que não conseguimos defini-lo. Cremos que temos um inconsciente e isso importa dizer que não sabemos o que existe ali. Então, é tanto possível dizer que o que tem ali é o que cremos que somos, quanto dizer que é um dos contrários quaisquer que achamos que somos. Impossibilidade da essência: eu não sei quem eu acho que sou eu mesmo em minha essência, e, por isso, também admito a impossibilidade de dizer que o outro é isso ou aquilo. Em outros termos, “não é mais possível, portanto, investir na representação do real à antiga – no máximo, na sua traumática apresentação,” e, por isso, “estou falido enquanto ‘eu claro e distinto’ – no mais tardar, desde as descobertas da psicanálise” (Souza, 2008, pp. 09 e 28).

Diante disso é impossível, se não alucinatório, pretender que uma pessoa seja naturalmente má. Daí que uma essência do criminoso também resta insustentável. Entretanto, constantemente atitudes criminalizadas são apresentadas como reflexo da natureza atávica do agente, da sua maldade intrínseca, exigindo, assim, a sua neutralização/contenção por meio do sistema penal. Paradoxal: as mesmas pessoas que crêem na existência do inconsciente, desejam dominá-lo e eliminá-lo quando assentam suas considerações sobre a maldade natural do criminalizado.

Pois que digam isso. Mas digam com franqueza: digam que por serem (vocês) bons são também melhores (que eles) e, portanto, tem maior capacidade de afastar o desconhecido que por desconhecerem tem medo de admitir que possuem, caros indivíduos equilibrados e auto-centrados no seu centro inventado. Digam que (vocês) por serem superiores podem melhor avaliar como salvar eles, coitados, que sequer sabem como é bom serem salvos por vossos salmos. Digam que fazendo o bem irão nos trazer a felicidade que apenas vocês por serem evoluídos (na escala que criaram) têm como conceituar o que é. Alimentem vossa superioridade dizendo silogisticamente que são melhores por serem bons e sendo bons só podem ser melhores (que eles), maus. “Sacerdotisa de nada, lanças profecias como quem lança milho às galinhas e só então suspiras, aliviada de tanta santidade” (Abreu,2007). Mas “que não nos venham contar histórias. Que não nos venham dizer, sobre o condenado a morte: ‘vai pagar sua dívida com a sociedade’, e sim: ‘vão cortar-lhe o pescoço’” (Camus, 2007, p. 72).

Limpem, purifiquem, higienizem, transformem essa minoria potencialmente perigosa e suja em exemplo de ascetismo, vistam-nos de branco; assim como a Razão, pela qual tanto faz que seja “dia ou noite, crepúsculo da manhã ou crepúsculo da tarde, silente madrugada ou rumorosa hora meridiana, os cegos sempre estavam rodeados duma resplandecente brancura, como o sol dentro do nevoeiro” (Saramago, 1995, p. 94). Por fim, “príncipes do pensamento humilhado” (Camus, 2007b), unam as mãos e digam, com franqueza: Amém. Estão salvos. É de vocês o reino dos céus, das alturas, da superioridade. Podem passar o resto da eternidade limpando a humanidade dos seus demônios interiores, por vocês expurgados quando se auto-pré-conceituaram como purificados de toda maldade desconhecida que vocês dizem conhecer, quando clareiam com sua razão cheia de luz a escuridão do desconhecido. Sejam felizes no seu círculo alucinatório de bondades alucinadas, cheias de si.

Defendam-se esquecendo que “o preconceituoso é a mais precária das criaturas: qualquer um, qualquer salafrário inteligente, qualquer ideologia delirante, dele faz uso e abuso” (Souza, 2008, P.43). Poupem-se do sofrimento escondendo de si que não estão falando de bruxas e seres pervertidos, mas de vocês mesmos, humanos, demasiado humanos (Nietzsche). “Se a ânsia pelo rigor existe em todos nós, humanos, temos que ter presente que todo rigor está repleto de inadequação” (Gauer, 2005, p.412). “Depois disso, meu caro compatriota, é muito difícil continuarmos seriamente a nos julgar com uma vocação de justiça e a nos considerar o defensor predestinado da viúva e do órfão” (Camus, 2006, p. 43), pois Sade já denunciou a construção artificial do sistema moral que opõe os valores Bem e Mal (Carvalho, 2008, pp. 183-190).

Então imaginemos “‘o inimigo’ tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu ‘o inimigo mau’, ‘o mau’, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um ‘bom’ – ele mesmo!” (Nietzsche, 1998, p. 31). Mas não esqueçam que “a irrealidade da causa não nega a realidade de seus efeitos” (Soares, Athaíde e MV Bill, 2005, p. 184), de forma que a persecução penal precisa do “mal” para preservar suas condições idealizadoras e preconceituosas de “bem”. Nessa geografia moral, a constante pretensão de esgotar o inconsciente em nome de uma racionalização que naturaliza alucinatoriamente serve para sustentar o que é latente e genocida: o maniqueísmo e a transa com o Sagrado - que estão arraigados nas entranhas da cultura penal.

Agora imaginemos: “Se os proxenetas e os ladrões fossem sempre condenados em toda a parte, as pessoas de bem, meu caro senhor, julgar-se-iam todas e incessantemente inocentes. E, no meu entender, é sobretudo isso que é preciso evitar. De outra forma, haveria muita razão para rir” (Camus, 2006, p. 32).

Referências

ABREU, Caio Fernando. Triângulo das águas. Porto Alegre: L&PM, 2007.

BIRMAN, Joel. Freud e a Filosofia. RJ: Jorge Zahar Ed., 2003.

CAMUS, Albert. A Queda. Trad. Valeria Rumjanek. 14ª ed., RJ: Record, 2006.

CAMUS, Albert. O Avesso e o Direito. Trad. Valeria Rumjanek. 6ª ed., RJ: Record, 2007.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. 4ª ed., RJ: Record, 2007 b.

CARVALHO, Salo. Antimanual de Criminologia. RJ: Lumen Juris, 2008.

GAUER, Ruth M.C. Da diferença perigosa ao perigo da igualdade. Porto Alegre: Civitas, v.5, n.2, 2005.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral – uma polêmica. Paulo César de Souza. SP: Companhia das Letras, 1998.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. SP: Companhia das Letras, 1995.

SOARES, Luiz Eduardo; ATHAYDE, Celso; MV BILL. Cabeça de Porco. RJ: Objetiva, 2005.

Em Torno à Diferença: aventuras da Alteridade na complexidade da cultura contemporânea. RJ: Lumen Juris , 2008.


Por:

Alexandre Costi Pandolfo, Mestrando em Ciências Criminais/RS, Bolsista CAPES

José Antônio Gerzson Linck, Mestrando em Ciências Criminais/RS, Advogado/RS


PANDOLFO, Alexandre Costi; LINCK, José Antônio Gerzson. Racionalização alucinatória na persecução penal. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 07.10.2008.

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