sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Artigo: Povo civilizado, apesar de tudo

Há trinta e um anos, o professor Goffredo da Silva Telles Junior lia a Carta aos Brasileiros no pátio da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em comemoração ao Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos no Brasil.

Dizia que um Estado será tanto mais evoluído quanto mais a ordem reinante consagre e garanta os direitos dos cidadãos, e que: “Tais direitos são valores soberanos. São ideais que inspiram as ordenações jurídicas das nações verdadeiramente civilizadas.”

Foi com esse espírito de valorização da cidadania que chegamos à Constituição Federal de 1988 e à consagração da democracia, da liberdade e dos direitos humanos.

De lá para cá, deixamos de lado a luta pela liberdade e passamos a exigir o gozo dos direitos adquiridos e o aperfeiçoamento das relações entre o Estado e a sociedade.

Vivemos, hoje, a crise de ter mais direitos do que o Estado quer garantir e menos respeito do que a nossa presunção de inocência autoriza. De um lado, nunca se avançou tanto no Brasil na construção de uma ordem jurídica comprometida com os direitos fundamentais; por outro, ignoram-se o direito, as garantias e o respeito aos compromissos constitucionais assumidos em prol da democracia.

Vivemos o retrocesso da arbitrariedade e da falsificação dos conceitos, especialmente quanto à presunção de inocência, e assistimos à “espetacularização” no cumprimento de mandados judiciais de prisão cautelar, com o uso indiscriminado de algemas em pessoas rendidas ou quase.

Tomamos conhecimento de decisões judiciais mais pela imprensa do que em obediência às prerrogativas da profissão. Impactados, aceitamos decisões judiciais de primeira instância que afrontam as da mais alta Corte de Justiça. Sucumbimos ao “poder da caneta” de representantes do Poder Judiciário que rapidamente determinam o encarceramento de cidadãos, mas levam meses, até anos, para restabelecer a liberdade, em nome dos genéricos fundamentos, mas de grande efeito televisivo, tais como “gravidade do delito”, “periculosidade intensa”, “sociedade atemorizada”, e daí por diante, sem dizer que o que falta é segurança pública e sobra exclusão social.

Com certeza, estamos precisando de alguém para reler em alto e bom tom a Carta do professor Goffredo aos novos justiceiros que não têm na lembrança os ideais de liberdade e de justiça que resultaram na Constituição Cidadã.

A atual crise jurídica atingiu o seu ponto máximo com a frase do juiz Fausto Martin De Sanctis: “Temos que fazer uma lei adequada ao nosso país. Não adianta querer fazer lei de país civilizado porque este país não é.”(1)

Pois é. Que lei seria essa? Aquela anterior a 1988 e que renegamos? Ou estaria o juiz reconhecendo que o Poder Judiciário não está devidamente aparelhado para enfrentar a incapacidade do Estado na garantia dos direitos constitucionais do cidadão?

Tenho, para mim, que além de infeliz, a frase demonstra a distância que existe entre o Povo e o Judiciário. Fossem os seus integrantes eleitos através do voto popular e o tratamento seria outro, pois civilizado se torna, ou se aperfeiçoa, quanto maior a civilidade e mais evoluída for a nação. O povo brasileiro é civilizado na mesma proporção (ou apesar) da educação que recebe.

Civilizar-se é tornar-se civil, respeitar-se, organizar-se. No Estado de Direito, o exercício da civilidade se apóia no direito de votar e ser votado, garantido pela Constituição Federal de 1988 e não exclui os indivíduos encarcerados sem condenação definitiva.

Com o objetivo de defender os direitos das pessoas presas, o Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas”, desde a sua formação em 2001, tem incentivado a discussão sobre o tema e provocado os Tribunais Regionais Estaduais — que não se empenham em assegurar o direito de voto dos presos — a providenciar as condições necessárias para a inclusão eleitoral dessa população tão carente, a exemplo dos (hoje) nove Estados brasileiros que cumprem a legislação eleitoral e respeitam os direitos políticos. São eles: Acre, Amazonas, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul e Sergipe. Estão previstas para estas eleições (outubro/2008) a instalação de seções eleitorais em Rondônia e na cidade de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro.

Clarissa Menezes Homsi, integrante do Grupo, em seu artigo “Direito de Voto ao preso provisório – A concretização de um dever do Estado”(2), demonstra que a implementação do voto para os presos depende apenas de vontade política, pois “a Constituição da República garante a todos os direitos políticos, determinando a obrigatoriedade do alistamento eleitoral e do voto aos maiores de dezoito anos. Tais direitos somente serão cassados nas hipóteses previstas no art. 15 da CF/88, nas quais são se incluem os indivíduos encarcerados de maneira provisória. Por outro lado, o Código eleitoral (Lei 4.737/65) impõe penalidades àqueles que, obrigados a votar, não se justificam perante a Justiça Eleitoral em até 30 (trinta) dias após a realização da eleição”.

Refere que o Estado, “na medida em que obriga ao voto os cidadãos”, deve dar “aos presos provisórios as condições para que exerçam o sufrágio, providenciando a implantação de seções eleitorais especiais”, previsão contida no art. 136 do Código Eleitoral.

Essa discussão foi levada pelo Grupo a todas as instâncias: comissões de direitos humanos, inclusive junto à Organização dos Estados Americanos (OEA), juízos das execuções penais, comissão parlamentar de inquérito, organizações não governamentais nacionais e internacionais, seminários e audiências públicas realizadas pelo Poder Legislativo Estadual e Federal, sem que até o presente momento o Estado de São Paulo tenha sido instado a cumprir com a sua obrigação.

Nesse caminho, apesar das dificuldades, novas parcerias foram estabelecidas e geraram ótimos resultados. Exemplo promissor é o caso do Rio Grande do Sul. Rodrigo Puggina, em meados de 2005 e na coordenação do Projeto/Campanha Voto do Preso do Instituto de Acesso à Justiça (IAJ), estimulou a prática de simulação do voto em penitenciária feminina na Capital e a possibilidade do registro das justificações eleitorais, trabalho esse que deu origem à Resolução n. 170/08 baixada pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul para a instalação de seção eleitoral no Presídio Central na Capital, atualmente lotado com 4.000 homens.

Na direção oposta, caminha o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. O grande número de eleitores no Estado (em especial, na Capital), o prazo para o fechamento do Cadastro Nacional de Eleitores, a situação dos distritos policiais, cadeias públicas e penitenciárias, assim como por insuficiência de recursos financeiros, são os argumentos que protelam o respeito à Constituição Federal.

Em bom momento surge o apoio do Ministério Público Federal, através da Procuradoria Regional Eleitoral em São Paulo, que convocou a audiência pública realizada em 19 de junho deste ano.

Sem dúvida, é outro marco importante no combate da resistência à inclusão eleitoral, não só pela conscientização do Ministério Público Federal, o que é por si só um grande avanço, mas pelos resultados práticos que poderá gerar, considerando que o Estado de São Paulo abriga mais de um terço da população prisional brasileira, o que significa, segundo dados divulgados pela incansável defensora pública e de direitos humanos, Carmem Sílvia de Moraes Barros, coordenadora do Núcleo de Situação Carcerária de São Paulo, que 54.000 pessoas estão em situação de privação provisória de liberdade e aptos a votar.

Nessa oportunidade, foram propostos os seguintes encaminhamentos: consultar — mais uma vez — o Tribunal Superior Eleitoral sobre as providências para efetivar o direito de voto do preso provisório e proceder à reclamação, pela ausência de medidas em favor deste; realizar “Termo de Ajuste de Conduta” com o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo, por ter atuação administrativa e não judicial; impetrar mandados de segurança em favor dos presos pela Defensoria Pública para que possam votar ou justificar a ausência; e, por fim, levar a notícia do desrespeito ao princípio constitucional à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Enquanto isso, por conhecer a realidade dos problemas gerados aos presos e egressos pelo descaso do Estado no cumprimento da Lei de Execução Penal e na garantia de seus direitos constitucionais, o Grupo e a coordenação do Departamento de Reintegração Social da Secretaria de Administração Penitenciária uniram-se na busca de soluções práticas para o re-encaminhamento da questão da justificação eleitoral ao TRE/SP, em favor de toda a população encarcerada no Estado.

A proposta é para que as justificações, a exemplo dos bons resultados obtidos no Rio Grande do Sul, se dêem a partir da conciliação eletrônica entre os dados fornecidos pela SAP e os do TRE/SP, possibilitando, também, conhecer o número de presos que não possuem o título de eleitor e providenciar a expedição dos documentos para as próximas eleições, evitando-se a aplicação de multas e os cancelamentos, sem dizer do constrangimento suportado pelos egressos na obtenção de informações ou expedição do documento para fins de registro em carteira de trabalho.

Vê-se, assim, que as dificuldades alegadas pelos juízes eleitorais para cumprimento da norma constitucional (ex.: falta de recursos financeiros e estrutura administrativa insuficiente) não passam de alegações protelatórias, feitas num país onde há leis que “pegam” e outras não, com o beneplácito do Tribunal Superior Eleitoral, que lhes conferiu a possibilidade, e não o dever, de instalar seções eleitorais especiais em estabelecimentos penitenciários(3).

Ora, como confiar aos TRE’s a possibilidade de garantir o direito de voto num país que elege representantes a cada dois anos e que tem 300.000 presos mal cuidados, mal encarcerados, mal educados e mal julgados?

As cadeias e penitenciárias estão lotadas de homens e mulheres jovens, todos sujeitos de direitos que têm em comum a privação de liberdade e a exclusão social. Negar ao preso provisório o seu direito ao voto é renegar a presunção de sua inocência.

A participação social e política são essenciais para a formação de uma sociedade mais livre e que se pretende democrática. Ao garantir o direito de voto e de justificação a todos, já a partir dos 16 anos, livres ou não, e a obtenção do documento eleitoral, o Estado estará aperfeiçoando as suas relações com a sociedade civilizada porque a formação política e a conscientização da importância da cidadania se estabelecem a partir da educação, com a participação em atividades escolares ou em manifestações públicas ou políticas.

O jovem que tem conhecimento dos seus direitos, ao vê-los respeitados, passa a fazer parte da sociedade sadia que reconhece seu direito de ter direitos civis, políticos e sociais(4).

Portanto, é preciso que se restabeleça a ordem defendida pelo professor Goffredo: a do Estado de Direito, sem privar o cidadão civilizado de suas conquistas.

A condenação criminal transitada em julgado é a exceção que impede o direito de votar e não o fato de estar preso ou livre. Além disso, há decisões judiciais que, ao condenar o acusado, preservam os direitos políticos, dando ao art. 15 da CF/88 interpretação mais favorável.

A realização do sufrágio dentro dos presídios de todo o país não será fácil, mas, também, não será impossível. Não podemos deixar que as dificuldades técnicas e a visão medíocre da relatividade dos direitos superem o princípio universal que garante a participação de todos os cidadãos, através do voto, dos destinos do seu país.

Notas

(1) O Estado de S.Paulo, edição de 15/08/08, A3.

(2) Boletim AJD, n. 26, julho/setembro 2002.

(3) Atos preparatórios para as eleições de 2002, Resolução 20.997.

(4) www.interagir.org.br/política


Sonia Regina Arrojo e Drigo, Advogada criminal, sócia fundadora e membro da coordenação do ITTC – Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, voluntária da Pastoral Carcerária, integrante do Grupo de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas” e do Conselho da Comunidade das Execuções Penais em São Paulo.

Boletim IBCCRIM nº 191 - Outubro / 2008

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