sábado, 4 de outubro de 2008

Artigo: Por que o juiz não deve produzir provas - a nova redação do artigo 156 do CPP (lei nº 11.690/2008)

1. Introdução

A recente Lei nº 11.690/2008, que alterou dispositivos do Código de Processo Penal, manteve, na estrutura processual penal brasileira, a possibilidade de o juiz indicar, de ofício, outras provas, não levadas aos autos pelas partes, no atual caput do artigo 156.

E, mais, na nova redação do artigo 156, I, do mesmo Código, permitiu ao juiz ordenar a produção de provas antes mesmo de iniciada a ação penal.

De certa forma, a inovação referida colide com a nova redação ao artigo 212, que introduziu, no sistema brasileiro, o sistema adversarial(1), que possibilita que as perguntas dirigidas às testemunhas sejam feitas diretamente pelas partes, podendo, contudo, o juiz, indeferir as inadequadas.

O que se pretende examinar, ainda que muito brevemente, é a matriz ideológica que foi mantida e ampliada com a inovação contida na redação do artigo 156 do Código de Processo Penal e se ela é adequada à diretriz constitucional.

2. As alterações do CPP e a manutenção da estrutura inquisitorial

A recente alteração pontual do Código de Processo Penal, no que tange à colheita da prova testemunhal (artigo 212), trouxe uma aproximação maior com o modelo acusatório “adversarial system”, o qual estabelece a nítida divisão dos papéis a serem desempenhados pelas partes, exigindo um julgador distante da persecução penal e dos atos probatórios de ofício.

Apresenta-se de grande relevância a referida alteração procedimental para o resgate de uma estrutura dialética do processo, permitindo-se uma intervenção direta das partes na produção de provas, respeitado o debate ético e a construção da “verdade” sujeita à verificação e refutação, conforme doutrina de Ferrajoli(2).

Restou consagrada a imediação, mais consentânea com as formas não substancialistas de apuração dos fatos, potencializando-se uma estrutura cognitiva e garantista de processo.

Em contrapartida, a nova redação do artigo 156 do Código configurou, respeitadas as posições contrárias, por óbvio, amplo retrocesso e vinculação a uma formatação autoritária, discricionária e substancialista de processo.

A iniciativa probatória do magistrado é herança do modelo inquisitivo, em que incumbia, basicamente, ao juiz, produzir e colher a prova diretamente, em um processo em que não havia a tripartição dos sujeitos processuais (juiz, acusador e defensor). Tal herança perpassou séculos e ainda remanesce em muitos países europeus, em maior ou menor medida, bem como no Brasil, como se vê na nova redação do dispositivo ora comentado.

Reforça-se, assim, a proeminência da atuação do magistrado na instrução da causa, enfraquecendo-se a estrutura de um processo de partes e de igualdade de armas, consagrado pela Constituição ao configurar o processo penal de modelo acusatório. Investe-se, com mais força ainda, na postura decisionista(3) na condução dos atos processuais.

Adotando-se como parâmetro o modelo garantista de investigação criminal, concluímos que tal dispositivo desvincula-se de um caráter cognitivo de apuração dos fatos, degradando-se uma verdade processual de natureza empírica, pública e controlada, para o convencimento intimamente subjetivo e “irrefutável do julgador”(4), em nome de uma arbitrária e equivocada visão de “verdade real” a ser alcançada.

Resulta consagrada, com a novel disposição, conforme Garapon(5), a deformação do processo, o qual tem, nesse delineamento, o “apetite de saber tudo”, característica do modelo inquisitório latino, em contraposição ao paradigma anglo-saxão, o qual delimita o objeto do conhecimento às “provas admitidas”.

Ao produzir provas de ofício, estimula-se, no magistrado, o pré-julgamento, bem como o seu comprometimento com uma hipótese que terá que submeter a teste. Mas esse papel não lhe cabe, pois sua postura deve ser imparcial, eqüidistante do interesse das partes. O prejuízo, dessa forma, à atuação imparcial do juiz e às garantias processuais das partes envolvidas consolida-se de forma óbvia.

O juiz não pode, não deve, nem precisa produzir provas porque a Constituição ordena outra postura diametralmente diferente: para ele, o réu é inocente até prova em contrário (Constituição, artigo 5º, LVII). Na falta de provas, impõe-se a absolvição! E, mais, há outros órgãos incumbidos constitucionalmente de desconstituir a presunção de inocência: o Ministério Público e a Polícia. Por que haveríamos de ter uma terceira instituição — na verdade um dos poderes do Estado — com o mesmo propósito de produzir provas?

A resposta é uma só: permanecemos no modelo inquisitivo. Na eventual ausência de diligência ou de competência do Ministério Público e da Polícia na tarefa de desconstituir a presunção de inocência do réu, apostemos as últimas fichas na atuação de ofício dos juízes!

A gestão da prova pelo julgador, de ofício, conforme a nova redação do artigo 156 e incisos I e II, do CPP, torna ilegítimo o processo penal, fere o contraditório, a Constituição da República e consolida o risco (concreto) de opções arbitrárias, além de permitir a fusão, em um círculo concêntrico, da ação e jurisdição, elementos estanques e distintos.

Fazzalari desenvolve a idéia de “procedimento em contraditório”, com a distinção entre processo e procedimento, resultando o segundo no espaço consagrado a uma estrutura dialética e destinada “a desenvolver efeitos: em contraditório, e de modo que o autor do ato não possa obliterar as suas atividades”(6). A conformação estrutural dessa idéia resulta nas hipóteses de participação efetiva das partes, em caráter de equilíbrio, exercitando “simétrica paridade das suas posições, na mútua implicação das suas atividades (destinadas, respectivamente, a promover e impedir a emanação do provimento); na relevância das mesmas para o autor do provimento”(7).

A consagração dessa postura dispositiva plena ao julgador consolida inconstitucionalidade diante do modelo acusatório delineado pela Constituição.

3. Há algo muito caro a perder. Por que o juiz deve ser afastado da iniciativa probatória?

Não há dúvida que a figura do herói constrói em todos um imaginário de bem supremo que cumpre ser perseguido. Desde a infância, somos estimulados a seguir o herói, em contraposição ao vilão, que encarna o supremo mal.

Freud foi buscar na tragédia grega a origem do significado do herói. O herói deve sofrer; tem de conduzir o fardo daquilo conhecido como culpa trágica, originada da rebelião contra alguma autoridade divina ou humana. O coro acompanha o herói com sentimentos de comiseração, procura retê-lo, adverti-lo e moderá-lo, pranteando-o quando encontra o que se sentia ser a punição merecida por seu ousado empreendimento(8-9).

Em outro trabalho(10), Freud volta ao tema do drama e do herói. Afirma que o motivo do drama é extravasar sentimentos nos espectadores, como a comiseração e o terror, do mesmo modo que a comédia libera o prazer e o gozo. O espectador, ao liberar os sentimentos que estavam recônditos, experimenta uma sensação de prazer, como o da criança ao brincar. A liberação de tais sentimentos o leva a querer agir, sentir, como o herói do drama, identificando-se com ele, mas com a grande vantagem de não ter que se expor aos mesmos riscos que o personagem do herói enfrenta.

Tal qual o expectador, o juiz herói também anseia por ação e justiça e está tão bem intencionado como o herói do drama. Sua luta não é contra a autoridade ou uma divindade; é contra o crime que assola a sociedade e que ele quer, sinceramente, combater. Ele sofre pela sociedade e com a sociedade. Quer estancar ou minimizar o sofrimento dela e quando consegue agir, o faz e pune exemplarmente.

O juiz herói acredita piamente que sua função é proteger a sociedade, esquecendo-se que essa função não é sua. As constituições geralmente cometem essa função de segurança pública, precipuamente, a outros órgãos, como a brasileira, que o faz no artigo 144, cometendo-a às Polícias, e no artigo 129, ao Ministério Público, secundariamente, na sua atividade requerente de sanções penais.

Pensando assim, o juiz herói superintende as investigações policiais e assessora o Ministério Público na sua atuação processual, seja antecipando sua convicção, seja orientando os requerimentos que serão deferidos, bem como suprindo-lhe eventuais omissões, como no caso de emenda ou mudança do libelo(11), para o fim de aplicar pena mais gravosa. Como o juiz onipotente, o herói também se antecipa ao poder dispositivo das partes no campo probatório e produz provas de ofício. Decreta medidas restritivas não previstas em lei, tudo para salvaguardar a sociedade.

No afã de proteger a sociedade, dá-se conta que todo herói precisa de um vilão e o elege na figura do réu, já acusado de um pecado e candidato natural a tornar-se o vilão do drama.

Não compreende que entre a jurisdição cível e a penal existe uma enorme distância, ocupada pela ideologia que preside este último e que conforma a estrutura e o funcionamento do Direito Penal e Processual Penal. O heroísmo do juiz tenderá a ocupar esse espaço com autoritarismo porque já formou previamente o seu convencimento e já escolheu o vilão do drama que encenará. Enquanto na jurisdição cível não se apresenta o peso da estrutura estatal em uma das pontas da relação processual, na jurisdição penal, no pólo ativo da demanda, está a superestrutura do Estado, com seu sistema investigativo, persecutório e executivo, no qual é muito fácil ingressar, mas muito difícil sair.

A sua ingenuidade assemelha-se à do herói, ao qual se referiu Garapon: “O herói trágico é o joguete do destino.”(12) É um joguete da deformação social com todas as suas injustiças e imperfeições.

O modelo de gestão da prova, de ofício, pelo juiz, assumido e ampliado pela nova redação do artigo 156 do Código, favorece postura que tais, de pretenso heroísmo na busca da verdade, representada como o bem, em contraponto ao mal. Mas ao lançar o juiz nas tramas de buscar provas, obrigatoriamente o juiz contracena com os demais atores do processo, troca posições, identifica-se com eles, ficando, mesmo, ao lado de um deles e diante do outro. Com isso, afasta-se da posição imparcial e eqüidistante: deixa de ser juiz para ser parte que tem o poder de dizer a verdade que tanto buscou e que finalmente encontrou, para o bem da sociedade.

Um juiz que detenha a gestão da prova não presume que o réu seja inocente, como determina a Constituição e, assim, não há como restar afastada a conclusão a respeito da inconstitucionalidade das posturas probatórias de ofício na forma como resultou a nova redação do artigo 156 do CPP, mais consentânea com uma formatação inquisitória e antidemocrática de processo.

Prado(13) esclarece que autorizar diligências de ofício, prisões cautelares, perícias, retira o caráter eqüidistante do julgador, surgindo opção valorativa prévia que prejudicará, com a máxima certeza, a legitimidade da decisão.

Obcecado pela “missão redentora” para salvação dos “maus elementos”(14) o julgador assumirá, com base na hipertrofia de seus poderes e retroalimentado pelas doutrinas autoritárias da “defesa social”, a postura inquisitorial em detrimento das garantias constitucionalmente asseguradas aos sujeitos processuais(15).

Gomes Filho pondera que a concessão de amplos poderes ao julgador, na seleção, exercício e ingresso do material probatório ao caderno processual, juntando-se ao feito “apenas o material probatório adequado à justificação de uma tese previamente escolhida”(16), prejudica a transparência e a cláusula do devido processo legal(17).

4. Conclusão

Em conclusão, atribuir ao juiz a gestão da prova, tal como autoriza o artigo 156 do CPP e, mais ainda, o seu § 1º, é inconstitucional, por violar o princípio da presunção constitucional de inocência e o sistema acusatório, cujos princípios reitores se ex­traem da própria Constituição.

Notas

(1) Anotamos a ressalva do adversarial system, modelo onde predomina a iniciativa das partes na condução do processo e na produção das provas, ao passo que na forma inquisitorial system, após a propositura da demanda o processo desenvolve-se pelo impulso oficial (GRINOVER, Ada Pellegrini. “A iniciativa instrutória do juiz no processo penal acusatório”. In: A Marcha do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 77).

(2) FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 37.

(3) Segundo Ferrajoli o decisionismo consiste na “falta de fundamentos empíricos precisos e da conseqüente subjetividade dos pressupostos da sanção nas aproximações substancialistas e nas técnicas conexas de prevenção e de defesa social” (FERRAJOLI, Luigi. Idem, p. 36).

(4) Idem, ibidem, id.

(5) GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia: O Guardião das Promessas. Tradução de Maria Luiz de Carvalho. 2ª ed., Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 86.

(6) FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Tradução da 8ª edição por Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006, p. 119.

(7) Idem, ibidem, id.

(8) Totem e Tabu e Outros Trabalhos (1913-1914), p. 157, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume XIII, Rio de Janeiro: Imago Editora.

(9) Freud interpreta a origem e o desenvolvimento da tragédia grega da seguinte forma: “Na realidade remota, os membros do coro é que tinham causado o sofrimento do herói. O crime que fora jogado sobre os seus ombros — presunção e rebeldia contra a autoridade — era o crime pelo qual os membros do coro (o conjunto de irmãos) era responsável. O herói era o redentor do coro”, sustentando que a tragédia era uma distorção tendenciosa da realidade, na medida em que o herói vinha ser o pai primevo, assassinado pelo conjunto de irmãos, aos quais o herói redimia (Ibidem, p. 158).

(10) Personagens Psicopáticos no Palco (1901-1905), p. 292, Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume VII, Rio de Janeiro: Imago Editora.

(11) Artigos 383 e 384 do Código de Processo Penal.

(12) Bem Julgar – Ensaio sobre o Ritual Judiciário, p. 192, Lisboa: Instituto Piaget.

(13) PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório. A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 131.

(14) A expressão é de Sandra Neri Cogo, em artigo intitulado “O mito da verdade material em tempos pós-modernos (uma abordagem a partir da ética weberiana). In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (org). Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 251.

(15) Em estudo a respeito da estrutura patológica dessa postura do julgador remetemos o leitor aos seguintes artigos: ROSA, Alexandre Morais da. “O juiz e o complexo de Nicolas Marshall”,disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 23.07.2003; e CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. “Quem é o juiz que aplica a pena?”, in: BAEZ, Narciso Leandro Xavier e BARRETO, Vicente de Paulo (orgs.). Direitos Humanos em Evolução. Joaçaba: Ed. UNOESC, 2007, p. 302.

(16) GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A Motivação das Decisões Penais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 37.

(17) GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 56.

Luis Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho, Doutor pela UERJ, mestre pela PRC-RJ, coordenador acadêmico do Programa de Pós-Graduação stricto sensu da Universidade Estácio de Sá e juiz de Direito no Rio de Janeiro

Solon Bittencourt Depaoli, Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá e juiz de Direito em Santa Catarina

CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de; DEPAOLI, Solon Bittencourt. Por que o juiz não deve produzir provas: a nova redação do artigo 156 do CPP (Lei 11.690/2008) Boletim IBCCRIM,

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