sábado, 11 de outubro de 2008

Artigo: Interceptações telefônicas: novos rumos?

Há tempos se assiste, no Brasil, a uma vulgarização do uso das interceptações telefônicas como meio de prova. Muitas escutas têm sido deferidas como primeiro recurso na investigação de fatos — as chamadas “interceptações de prospecção” — contrariamente à racionalidade adotada pela Lei n. 9.296/96. Infelizmente, interceptações prolongadas por anos tornaram-se fato corriqueiro e a divulgação (vedada expressamente pela lei) de transcrições pela imprensa ocorre praticamente todos os dias, sob a escusa de que seriam diálogos interceptados “com autorização judicial”. Os alarmantes dados fornecidos pelas operadoras de telefonia à CPI das Escutas Telefônicas, dando conta de que mais de quatrocentos mil números de telefone teriam sido objeto de interceptação em 2007, já deixavam evidente a dimensão do problema.

A questão parece ter recebido a devida atenção no debate público somente após a divulgação da escuta — clandestina, frise-se — de um diálogo havido entre o Presidente do Supremo Tribunal Federal e um Senador da República. Ainda que escuta clandestina e interceptação judicialmente autorizada sejam situações distintas, fato é que o episódio gerou novas reflexões sobre o tema, de forma geral.

Nesse contexto de novas reflexões a alimentar de forma muito salutar o debate, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu, no último dia 9 de setembro, relevantíssima decisão sobre a questão do prazo para a realização de interceptações, no HC 76.686. Alterando entendimento precedente da própria Sexta Turma, o HC declarou a nulidade de interceptações telefônicas realizadas durante aproximadamente dois anos.

No julgamento, discutiu-se qual interpretação deve ser dada ao art. 5º, da Lei n. 9.296/96, que afirma “[a interceptação] não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo, uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”. Indubitavelmente, poderia o texto legal ter sido mais claro no que se refere à possibilidade ou não de renovações reiteradas.

Fato é que esse dispositivo foi interpretado pelos tribunais ao longo dos anos no sentido de que as prorrogações de quinze dias poderiam se repetir tantas vezes quanto necessário, desde que comprovada a indispensabilidade da continuidade da interceptação. Assim, deferiam-se interceptações reiteradas, sem, na prática, qualquer limitação temporal.

Tal interpretação acabou permitindo a ocorrência de diversas investigações em que se verificou o prolongamento de interceptações por anos a fio, ultrapassando a barreira do razoável, especialmente porque a interceptação telefônica representa uma limitação excepcional a um direito fundamental, qual seja, o da privacidade.

E foram esses precedentes que a decisão do STJ acabou, agora, por contestar. Em seu belo voto, o ministro Nilson Naves destacou que normas que restringem direitos individuais fundamentais têm de ser interpretadas restritivamente, em favor do valor liberdade. Ademais, lembrou que o prazo de aproximadamente dois anos de interceptações não apenas ultrapassou os dois períodos de quinze dias permitidos legalmente (art. 5º, da Lei n. 9.296/96), mas até mesmo o prazo de sessenta dias previsto na Constituição Federal para as restrições aos direitos de sigilo de comunicação telegráfica e telefônica em caso de estado de defesa (art. 136, § 1º, inc. I, alínea c, e § 2º). Ou seja, ainda que fosse decretado o estado de defesa no País — situação de evidente excepcionalidade — o prazo máximo para a restrição do sigilo telefônico seria de sessenta dias. Esse dado revela manifestamente a falta de razoabilidade e proporcionalidade, face à nossa Constituição, das interceptações que se prolonguem por mais tempo.

A declaração de nulidade daquelas interceptações, que foram consideradas provas ilícitas, num caso de repercussão que apurava crimes graves, confirma, ainda, a defesa da correta aplicação da Constituição e das leis brasileiras, bem como o desagrado de nossos Tribunais Superiores com os riscos de um estado policialesco.

A decisão do STJ, sem dúvida, é um alento em meio a uma situação que há muito se mostrava descontrolada. Oxalá represente um marco no estabelecimento de novos rumos do tratamento das interceptações telefônicas como meio de prova, não apenas no que tange à sua delimitação no tempo, senão também quanto à sua imprescindibilidade e concreta necessidade.

Editorial. Boletim IBCCRIM nº 191 - Outubro / 2008.

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