sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Artigo: Instituição dos Juizados Especiais Criminais no Brasil e sua influência na aplicação das penas alternativas

O Brasil tem comparecido a todos os Congressos das Nações Unidas, como Gênova, Caracas, Kioto, Londres e Cairo. Neles, tem-se insistido na instituição dos Juizados Especiais Criminais, competentes para o processo e julgamento das infrações penais de menor poder ofensivo, e na adoção das chamadas penas alternativas, como multa, prestação de serviços à comunidade, interdições de direitos etc..

No final de 1995, em face dos esforços do Ministro da Justiça Nélson Jobim, o Congresso Nacional editou a Lei nº 9.099, de 26 de setembro, criando os Juizados Especiais Criminais, competentes para processar e julgar as ações penais por infrações de pequeno poder ofensivo, como as contravenções e os delitos apenados, no máximo, com um ano de privação de liberdade, conferindo ao juiz poder de aplicar penas alternativas.

A Lei nº 9.099/95 provocou verdadeira revisão de conceitos e de tradicionais dogmas do Processo Penal brasileiro. Assentada em dispositivo específico da Constituição Federal, criou princípios próprios. Não se trata de mais um rito processual, como os que regem as ações penais por delitos cometidos por funcionário público, crimes falimentares, contra a honra etc..

Cuida-se de um novo sistema criminal, com filosofia e regras específicas. O art. 98, I, da Constituição Federal, ao permitir a conciliação entre Estado e autor do fato nas infrações penais de menor potencial ofensivo, revolucionou a sistemática reinante, reservando a jurisdição clássica somente para os crimes de maior gravidade (espaço de conflito), como homicídios, lesões corporais gravíssimas, roubos, latrocínios, peculatos, estupros etc.. Para as outras infrações, temos uma fórmula de soluções rápidas, sem o custo do modelo clássico.

No sistema do Código de Processo Penal ortodoxo vigoram a obrigatoriedade da ampla defesa e do contraditório, ainda que contra a vontade do acusado, e a imprescindibilidade do processo como instrumento necessário à satisfação do jus puniendi. Denúncia e queixa não podem ser oferecidas sem elementos probatórios que apontem, ao menos, a possibilidade de acolhimento da pretensão acusatória. Aplicam-se todos os princípios e garantias do devido processo legal, tais como do juiz natural, do duplo grau de jurisdição, da indisponibilidade da ação penal pública, da ampla defesa, do contraditório, da verdade real etc.. A Lei nº 9.099 reconheceu a existência de um espaço de consenso. O modelo tradicional de jurisdição conflitiva passou a conviver com um novo sistema criminal, surgindo uma jurisdição compositiva.

Objetivando a celeridade e a compensando com medidas despenalizadoras, o novo modelo consagra a autonomia da vontade do autor do fato, com mais relevante até mesmo do que às antigas garantias processuais.

Trata-se do maior acontecimento do sistema criminal brasileiro dos últimos cinqüenta anos.

Hoje, podemos dizer que possuímos dois sistemas criminais:

1º - clássico: confere ao processo comum a tramitação das ações penais por crimes de maior ofensa jurídica, como homicídios, roubos, latrocínios, estupros, tráfico de drogas etc., aplicando-se o Código de Processo Penal;

2º - consensual: inaugurado pela Lei nº 9.099, que passou a reger os conflitos penais de menor importância lesiva, como lesões leves dolosas e culposas, acidentes de trânsito sem vítimas fatais, contravenções, ameaças, desavenças etc..

A lei nova, inspirada no modelo político-criminal consensual, admite que o infrator abra mão de algumas garantias constitucionais em prol de satisfazer outros interesses pessoais, como, v.g., o de não sofrer o constrangimento de um processo penal em virtude da prática de uma infração penal de pouca monta. Alterando a processualística vigente, adotou o modelo consensual de jurisdição, já existente no ordenamento jurídico dos países mais desenvolvidos, rompendo com os tradicionais dogmas do modelo conflitivo seguindo pelo Código de Processo Penal. Buscando a agilização da prestação jurisdicional para as infrações de diminuto potencial ofensivo, consagrou novos postulados, como o da supremacia da autonomia da vontade do acusado, ou suspeito sobre princípios antes considerados obrigatórios, como os da ampla defesa e do contraditório. Nesse novo sistema criminal, não se exige com o mesmo rigor a demonstração do fumus boni juris para a propositura da ação penal. No lugar do inquérito policial ou peças de informação a lei permitiu o oferecimento de denúncia ou queixa com base A grande importância da Lei nº 9.099 está em permitir que todos os juízes brasileiros, sejam da Justiça Comum ou Especial ou a dos Juizados Especiais Criminais, apliquem quatro institutos:

1º - a composição civil (art. 74);

2º - a transação penal (art. 76);

3º - a exigência de representação do ofendido em determinados crimes (art. 88); e

4º - a suspensão condicional do processo ou "sursis" processual (art. 89).

A composição civil permite que em certos crimes, como os de lesões corporais culposas no trânsito, lesões corporais dolosas leves etc., em que é exigida a representação da vítima, o "caso penal" seja resolvido prontamente, às vezes em horas ou poucos dias. Em Brasília, dias atrás, presenciamos uma audiência de conciliação por crime de lesão leve culposa cometida no trânsito poucas horas antes. Houve acordo civil, que, homologado pelo Juiz Especial Criminal, permitiu a extinção da punibilidade e o encerramento do "caso", evitando o processo criminal. A solução penal, que no sistema clássico levava anos para ser conseguida, foi alcançada pelo Juizado poucas horas depois do crime.

A transação penal, que difere da "plea bargaining", enseja a aplicação de uma pena alternativa, geralmente multa ou prestação de serviço à comunidade, quando a sanção privativa de liberdade, abstratamente cominada, não supera um ano. Recentemente, o Senhor Ministro da Justiça promoveu uma teleconferência sobre as penas alternativas, ocasião em que três Ministros puderam expor ao povo brasileiro a questão da falência da prisão como resposta criminal genérica e a necessidade de avançarmos no sentido de outras penas. Observou-se que as várias legislações cominam hoje cerca de 28 penas alternativas, permitindo ao juiz criminal uma melhor individualização da resposta penal.

A exigência de representação da vítima nos delitos de lesão leve dolosa e lesão culposa, esta geralmente causada no trânsito de veículos, aliviou a atividade da Polícia Judiciária.

Por último, a suspensão condicional do processo tem obtido enorme sucesso, admitindo que o juiz, em certos crimes com pena mínima abstrata privativa de liberdade não superior a um ano, na fase da denúncia, suspenda a ação penal por determinado período, durante o qual o acusado pode demonstrar sua ressocialização. Terminado o período de provas sem revogação, extingue-se o processo.

Com essas medidas, o Brasil permitiu ao Poder Judiciário separar as infrações penais graves das de menor potencial ofensivo. Estas permanecem na competência dos Juizados Criminais Especiais; aquelas, processadas e julgadas pelo Juízo Comum. Com isso, os delegados de Polícia, Promotores de Justiça, juízes de Direito e Tribunais, desafogados de um número infinito de processos, estão podendo cuidar com maior zelo das infrações penais de maior poder ofensivo. Só em Brasília, em apenas dois meses, o Juizado Especial Criminal resolveu, sem processo regular e sem aplicação de pena privativa de liberdade, quatrocentos casos de conflitos penais. E, em São Paulo, há resultados surpreendentes em conseqüencia da adoção dos quatro referidos institutos da lei nova. Dentre os efeitos benéficos, podemos citar:

1º - aumentou o número de denúncias por crimes graves;

2º - melhorou a qualidade da prova colhida no inquérito policial. Antes da lei, um só delegado de polícia, na capital de São Paulo, presidia 2.000 inquéritos, o que impedia uma boa coleta de provas. Hoje, sem o acúmulo de serviço anterior, a autoridade policial tem condições de produzir e fornecer ao Ministério Público provas mais convincentes nos delitos de maior gravidade;

3º - é de melhor qualidade a descrição dos fatos criminosos nas denúncias, evitando a rejeição por inépcia. Antes, como competia ao promotor de Justiça oferecer denúncia em centenas de inquéritos policiais, o acúmulo de trabalho impedia uma melhor descrição dos fatos.

Hoje, cresceu a qualidade da peça inicial da ação penal pública;

4º - instrução criminal está se processando em melhores condições, garantindo os direitos dos acusados e a reta distribuição de justiça. Antes, gastávamos o mesmo tempo num latrocínio e numa simples contravenção. Hoje, dispensa-se mais tempo útil às infrações de maior potencial ofensivo.

No campo da legislação penal material e processual penal, o Senador Ministro da Justiça está promovendo uma reforma "por pontos", atualizando nossos estatutos de acordo com a moderna sistemática criminal. Assim é que foram editadas as Leis nºs 9.268/96, 9.269/96 e 9.271/96 alterando dispositivos do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei de Execução Penal.

No terreno da execução da pena privativa de liberdade, recente decreto de indulto presidencial permite a liberação de condenados que apresentam condições pessoais favoráveis pena não superior a seis anos. Geralmente, só era permitido quando a pena não fosse superior a quatro anos.

O Governo Federal, num prazo de dois anos, pretende desativar os grandes complexos penitenciários, construindo estabelecimentos parcelares, já em fase de projetos. De todas as medidas, a que vem obtendo mais sucesso é a possibilidade de, nas infrações de menor poder ofensivo, poder o juiz aplicar as penas alternativas, o que concede à vítima uma pronta resposta à lesão sofrida e, ao autor do fato, a garantia de uma solução penal rápida.

Temos conhecimento das dificuldades que ainda enfrentamos no campo da punibilidade, a exigir esforço incomum na concretização do ideal de busca perene da resposta penal firme e pronta, sem descurar dos direitos fundamentais do cidadão. O compromisso cívico com a segurança das instituições democráticas, entretanto, fornece-nos a certeza de que estamos no caminho certo, rumo a um sistema criminal justo e humano.

Damásio E. de Jesus Procurador de Justiça aposentado

JESUS, Damásio Evangelista de. Instituiçäo dos Juizados Especiais Criminais no Brasil e sua influência na aplicaçäo das penas alternativas. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.45, p. 02-03, ago. 1996.

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