segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Artigo: Ideologia do inimigo e o momento consumativo do roubo

A 1.ª Turma do STF (Supremo Tribunal Federal), em 16 de setembro de 2008, no habeas corpus 92.450-DF, rel. orig. ministro Marco Aurélio, rel. para o acórdão ministro Ricardo Lewandowski, ratificou antigo entendimento do mesmo tribunal no sentido de que o roubo se consuma com o simples apossamento do bem, independentemente da inversão tranqüila da posse.

Afirmou-se o seguinte: ainda que haja perseguição imediata e recuperação da coisa, ainda assim, tratar-se-ia de roubo consumado (não tentado).

Com a devida vênia, esse posicionamento do STF é totalmente equivocado. Dele, o que se extrai de pronto é o fundo ideológico punitivista (ideologia do inimigo), que constitui a base do direito penal do inimigo. Confundiu-se crime material, que exige resultado naturalístico para a consumação, com crime formal, que não exige tal resultado.

Resultou obscurecida a distinção entre consumação formal (adequação do fato à letra da lei) e consumação material (que só ocorre com a efetiva lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico). Desprezou-se a nítida diferença que existe entre crime de lesão e o crime de perigo.

Conceitos dogmáticos (técnico-jurídicos) elementares foram menosprezados na decisão mencionada, que retrata um claríssimo distanciamento entre a ciência penal, dogmática, e a jurisprudência.

Em virtude do preconceito ideológico, resultaram atropelados conceitos essenciais do Direito penal. A ideologia do inimigo gera, muitas vezes, verdadeiro eclipse da ciência penal, numa espécie de obscuridade voluntária, que resulta numa brutal distorção de conceitos.

O pior cego, também quando se trata do poder punitivo do Estado, é o que não quer enxergar. Sabe que tecnicamente está errado, mas não tem predisposição para superar seus prejuízos (pré-juízos) ideológicos.

Quando se consuma o delito de roubo próprio? Ora, cuidando de delito material, que exige resultado naturalístico para a consumação, parece evidente afirmar que o roubo próprio consuma-se no momento em que ocorre a efetiva lesão patrimonial.

Não se trata de crime de perigo, que se consumaria com o simples desvalor da conduta dotada de periculosidade para o bem jurídico. Não se trata de crime formal, que também se consumaria com o simples desvalor da conduta. Roubo é um delito material do ponto de vista naturalístico e de lesão do ponto de vista jurídico.

Não se pode nunca confundir o roubo (Código Penal, artigo 157) com a extorsão (CP, artigo 158). Sob o enfoque naturalístico, a extorsão é crime formal, ou seja, não necessita de resultado naturalístico para se consumar.

Sob o enfoque jurídico a extorsão é um crime de perigo, já não se exige lesão do bem jurídico patrimonial, basta seu efetivo risco. Distintamente, o roubo é crime material (exige resultado naturalístico para se consumar) e de lesão (exige lesão efetiva ao bem jurídico patrimônio).

Conclusão: sem a efetiva (real, concreta e comprovada) lesão patrimonial não há que se falar em roubo (próprio) consumado, que exige desvalor da conduta (conduta perigosa para o bem jurídico) mais desvalor do resultado (lesão patrimonial efetiva).

Enquanto o agente não tem a posse tranqüila da coisa subtraída não há que se falar em consumação, porque ainda não se concretizou o desvalor do resultado (a lesão).

O apossamento da coisa, por si só, já representa um perigo para o bem jurídico, e isso não se discute. Essa situação de perigo se desfaz no instante em que a coisa subtraída ingressa na esfera de disponibilidade tranqüila do agente.

Uma boa fórmula para decifrar essa questão ocorre quando o agente pode, com toda tranqüilidade, dizer: agora posso desfrutar da coisa subtraída. Enquanto essa situação de posse tranqüila não se dá, pode-se afirmar a ocorrência de um perigo para o bem jurídico (não uma lesão efetiva, que é necessária para a consumação do roubo).

O acórdão publicado no HC 92.450-DF fala em "roubo frustrado", que se consumou (sic). Cuida-se de ato falho (do relator) que bem explica o íntimo conflito entre o que ele sabe e o que ele concluiu. O eminente relator sabe que realmente houve um roubo frustrado, ou seja, tentado, mas concluiu pela consumação.

A técnica briga, muitas vezes, com a ideologia. Por razões técnicas o caso descrito (subtração e imediata perseguição, sem ter havido posse tranqüila) constitui roubo tentado. Em virtude de diretrizes ideológicas concluiu-se pela consumação.

Correto, assim, o posicionamento do ministro Marco Aurélio, que, embora vencido, traduzia a melhor doutrina bem como o ponto de vista técnico mais adequado. Pelo seu voto ele restabelecia a decisão do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que havia reconhecido o roubo tentado (acertadamente).

Sem posse tranqüila (do bem subtraído) jamais se pode afirmar a consumação (material) do roubo, que exige lesão efetiva do bem jurídico tutelado pela norma penal.

Em direito penal perigo é perigo, lesão é lesão. Uma situação de perigo (presente quando o agente é perseguido imediatamente e o bem é restituído) não pode nunca se confundir com lesão (que ocorre, no caso do roubo, quando o bem jurídico foi concretamente lesado).

Fazendo um paralelo com o homicídio: o dar a facada, o levar a vítima para o hospital, fazer cirurgia, etc.: tudo isso ainda representa apenas um perigo para vida da vítima.

No instante em que ela morre, o delito se consuma. No roubo: o subtrair o bem, o tentar se afastar do local dos fatos, o ser perseguido, etc.: tudo isso representa mero perigo para o bem jurídico patrimonial.

Quando acontece a posse tranqüila, consumado está o roubo. Antes disso, só existe uma situação de perigo (que retrata uma tentativa, nos crimes de lesão, não a consumação).

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan - Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina - Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais - www.lfg.com.br)

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 12/10/2008.

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