quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Artigo: Ensaio sobre a cegueira voluntária

“Living is easy with eyes closed, misunderstanding all you see.”
The Beatles, Strawberry Fields Forever

Certamente, todos estão familiarizados com a história, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, dos três jovens que passaram dois anos presos sob a acusação de terem estuprado e matado a ex-namorada de um deles. Com a prisão do “se­rial killer” que ficou conhecido como o maníaco de Guarulhos, este teria confessado a autoria do crime, com uma riqueza de detalhes que somente o verdadeiro assassino poderia conhecer, como, por exemplo, a roupa usada pela vítima quando foi morta, o fato de o corpo ter o rosto coberto por um véu, etc.

Os rapazes foram soltos, o promotor de Justiça responsável pelo caso já avisou que pedirá a absolvição deles, o secretário de Segurança Pública já anunciou que eles serão indenizados sem necessidade de processar o Estado e todos comemoram o final feliz, o desfazimento de uma gravíssima injustiça, que, felizmente, aconteceu antes de uma possível condenação dos réus inocentes pelo Tribunal do Júri.

Nesse clima, os jornais publicam entrevistas nas quais os jovens contam os horrores da prisão, incluindo-se aí bárbaras sessões de tortura, falam de seu medo de represálias, de planos para o futuro, dizem que são seres humanos e não lixo (e podemos apenas imaginar o tratamento dado a eles nos últimos anos, para que julgassem ser necessário fazer o esclarecimento de fato tão óbvio).

Lemos ainda a descrição da emocionante saída deles da prisão e de como eles foram recebidos com fogos de artifício no bairro onde moram. É o tipo de notícia que a maioria das pessoas não se cansa de ler.

No entanto, embora renda belas matérias jornalísticas (e é mesmo inegável o interesse humano da notícia), a saída deles da prisão é a parte menos importante da história, até porque esta saída se deu por mera casualidade, ou sorte (o verdadeiro culpado foi preso por outro motivo, não porque alguém tenha dado algum crédito aos protestos de inocência dos três e tenha resolvido investigar melhor o crime pelo qual eles foram presos e processados).

O que realmente importa, repita-se, não é como e porque eles saíram da cadeia, mas como e porque nela entraram e permaneceram por tanto tempo.

Aparentemente, a questão já foi respondida: toda a injustiça aconteceu por causa de maus policiais, que os torturaram e obrigaram a assinar falsas confissões, as quais, por sua vez, induziram o promotor de Justiça e o juiz a erro. Assim, a denúncia foi oferecida e recebida; as prisões cautelares, requeridas e decretadas; a sentença de pronúncia, prolatada; e, finalmente, o recurso dos réus, improvido, mantendo-se, é claro, a prisão.

Mas parece — e é — muito cômodo e fácil atribuir a culpa aos policiais torturadores, professar repulsa à tortura, e eximir de qualquer responsabilidade os nobres membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, certamente acima de compactuar com tais condutas.

Todos parecem se esquecer de que o juiz e o promotor têm o dever de fiscalizar a legitimidade da atuação policial. Se alguém é torturado para confessar, espera-se que, finalmente, ao se ver no Fórum, diante de um juiz de Direito e de um promotor de Justiça, como num santuário, poderá falar livremente e ali encontrar guardiães dos direitos constitucionais garantidos no artigo 5º, que se indignarão, e descartarão a confissão forjada, além, é claro, de tomar todas as medidas possíveis para punir os criminosos (fardados ou não), deixando claro que não compactuam com seus “métodos de interrogatório”.

Se os três jovens alimentavam tais esperanças, deram com os burros n’água: se é verdade que, pela primeira vez, puderam falar livremente — e, segundo consta, de fato puderam, pois em entrevistas aos jornais, eles contam que a descrição minuciosa de todas as torturas por eles sofridas estão nos autos — por outro lado, não é menos exato que isso de nada lhes serviu, uma vez que aqueles que deveriam protegê-los de abusos, os tais “guardiães da legalidade”, não deram crédito algum às suas palavras: prova disso é que as prisões cautelares foram mantidas e a sentença de pronúncia, prolatada, como verdadeiras chancelas do “trabalho” policial.

Ainda assim, o sistema legal tem outra forma de corrigir possíveis equívocos: o duplo grau de jurisdição. A parte que se sentir injustiçada pode recorrer ao Tribunal de Justiça, onde, após um parecer da Procuradoria de Justiça, o caso é submetido a três desembargadores, mais experientes que o juiz de primeira instância.

No caso em exame, também no tribunal, ninguém viu nada de errado com a pronúncia e a prisão cautelar.

Diante de tais fatos, as perguntas que, mais do que não querer calar, berram para serem feitas, são perturbadoras:

• Onde falhou o sistema, para que as coisas chegassem tão longe, em se tratando de réus inocentes?

• Considerando: i) que o sistema é falho, e ii) como se realçou, os três só foram inocentados por mera casualidade, quantos inocentes que não tiveram a mesma sorte — de o verdadeiro culpado ser preso e confessar o crime — não estarão presos, provisoriamente ou condenados, pelo país afora?

• Se os rapazes fossem culpados, seria menos grave torturá-los para obter suas confissões?

Com relação à primeira questão, as declarações desastradas dadas aos jornais por algumas das autoridades envolvidas ajudam a descobrir a resposta. O desembargador responsável pela Relatoria, por exemplo, insiste que manteria os rapazes presos e pronunciados, mesmo agora, diante dos fatos novos. Para defender sua posição, chega ao ponto de atribuir “notas”, numa escala de 0 a 10, para a necessidade da pronúncia e da prisão cautelar, de acordo com os elementos existentes nos autos.

Confrontado com o fato de outra pessoa ter confessado o crime com uma riqueza de detalhes que só o verdadeiro assassino poderia conhecer, o nobre julgador não se abala. Seria de se esperar que ao menos ele admitisse a mera possibilidade de seus critérios para avaliar os elementos dos autos estarem errados, atribuindo a esses elementos força probante maior do que eles têm na verdade. A providência seria de fundamental importância para outros réus inocentes, os quais, ante a impossibilidade de descobrir o verdadeiro autor do crime do qual estão sendo acusados, ao menos saberiam que não têm a obrigação ou a necessidade de fazê-lo, pois poderiam ter a certeza de que só seriam presos/pronunciados/condenados se houvesse elementos idôneos para isso.

No entanto, ao invés de fazer esse exercício de autoquestionamento e humildade, saudável até mesmo para aqueles que, diferentemente dele, não são confrontados com a prova do desacerto de suas decisões, o desembargador preferiu olhar para fora e questionar a idoneidade da prova do seu erro (coisa que nem o juiz e o promotor do caso fizeram).

Assim, ele lança dúvidas sobre a confissão do tal “maníaco”, afirmando não saber em que condições ela teria sido obtida e salientando que ele está confessando “por atacado” (como se a quantidade de crimes cometidos não fosse, por definição, característica essencial do serial killer).

Ainda assim, tais preocupações com as condições de obtenção da confissão são pertinentes e seriam até elogiáveis, não fosse pelo fato de elas não terem dado o menor sinal de vida no caso em que aquele que as manifestou tinha a obrigação de se preocupar: o dos três jovens que ele manteve presos. Como, até onde se sabe, neste caso Sua Excelência não fez qualquer reserva à confissão policial, embora os três tivessem dito expressamente nos autos que tinham sido torturados, essa súbita manifestação de dúvidas quanto à idoneidade da confissão do “maníaco” parece puro oportunismo. Em outras palavras, tal manifestação não parece ser fruto de uma preocupação genuína, mas da necessidade de ter argumentos para não admitir o próprio erro.

Embora o promotor de Justiça e o juiz de primeiro grau tenham tido a decência mínima de reconhecer que houve um erro grave, requerendo e determinando a soltura dos réus, é certo que se eles tivessem considerado a hipótese de que os rapazes pudessem estar falando a verdade, ao invés de confiarem cegamente no “trabalho” da polícia (para isso, convenha-se, não são necessários juízes ou promotores: poder-se-ia passar diretamente do relatório do inquérito policial ao julgamento pelo Tribunal do Júri), ou se ao menos não pedissem e decretassem prisões cautelares desnecessárias (ao que consta, ao menos um deles foi preso dentro de casa), a injustiça poderia ter sido sanada muito antes; mas, repita-se ainda uma vez, isso só ocorreu porque os réus tiveram a sorte de ser descoberto o verdadeiro autor do crime, ou correriam o sério risco de serem condenados no Tribunal do Júri, até porque quando o juiz e o Tribunal mantêm os réus presos, é natural que os jurados fiquem propensos a acreditar na periculosidade deles e, conseqüentemente, a condená-los (bem por isso, não é raro a acusação usar tal “argumento” ao pedir a condenação aos jurados).

A explicação para tal atuação profissional que penalizou três inocentes, ignorando suas denúncias de tortura, está expressa numa obtusa declaração dada aos jornais e é assustadora, sob vários aspectos. Segundo o promotor de Justiça, a justificativa para não dar crédito à palavra dos réus seria que “90% dos que confessam na polícia depois afirmam em Juízo que confessaram falsamente sob tortura”.

Na verdade, obtusa não é a declaração em si, que deve até ser verdadeira, mas a conclusão que dela se pretende extrair, de que, portanto, as alegações de tortura não devem, via de regra, ser levadas a sério.

A conclusão correta e óbvia, ao menos para quem enxerga um palmo na frente do nariz e que, além disso, não tolera hipocrisia, é que a imensa maioria dessas confissões é mesmo obtida por tortura. Não por outro motivo, o secretário dos Direitos Humanos da Presidência da República, Paulo de Tarso Vanuchi, afirmou que “a tortura continua sendo prática rotineira, num patamar muito elevado” (O Estado de S.Paulo, 4.9.2008, p. C5).

Ou alguém dotado de um pingo de bom senso realmente acredita que um sujeito, mesmo que tenha praticado um crime (de inocentes, então, nem se fala), confessaria espontaneamente na polícia só para depois negar perante o juiz? Seria a figura dos policiais tão mais inspiradora de bons sentimentos (compungidos, honestos) que a dos magistrados, perante quem os acusados não teriam qualquer pudor em mentir? Seria algum curso de psicologia do interrogatório ministrado nas academias de polícia a que os juízes não têm acesso? Teriam os policiais alguma nova tecnologia, uma espécie de “interrogator tabajara”? Algum soro da verdade, talvez?

Bem por isso, em sua obra primorosa, O Valor da Confissão” (Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2ª ed., 1999) Guilherme de Souza Nucci dedica um trecho especialmente à confissão feita no inquérito policial. De início, afirma, “não se pode iniciar a avaliação sem conhecer a razão de ser do inquérito policial e os notórios aspectos ligados à violência policial no curso das investigações do crime” (p. 187, grifos nossos).

E, mais adiante, o autor deixa claro que, “como procedimento preparatório e preventivo, não tem qualquer contorno judicial, sendo inválido para produzir provas, via de regra, contra o réu,” pois “estão longe do inquérito policial os princípios fundamentais da ampla defesa e do contraditório” (ob. cit., p. 189/190, grifos nossos).

E prossegue:

“Ressalte-se o disparate que ocorre, atualmente, nos julgamentos do Tribunal do Júri, quando provas produzidas na polícia, sem a menor confirmação em juízo, são exibidas com a maior naturalidade aos jurados, como se efetivas provas fossem, auxiliando sobremaneira na condenação dos réus. Afinal, juízes leigos que são, como discernir entre provas da polícia e provas do juízo? Se nebulosos ainda são os conceitos do contraditório e da ampla defesa para muitos juízes togados, logicamente, dos jurados não se poderia exigir pleno discernimento a esse respeito. Ao decidirem por livre convencimento imotivado, podem optar pela condenação exclusivamente por conta de uma prova — às vezes até falsa — produzida na fase extrajudicial. Essa não é a garantia que queremos para uma imparcial distribuição de justiça, de forma que deve o Judiciário fortalecer sua posição contrária à realização e aceitação desse tipo de prova” (ob. cit., pp. 192/3, grifos nossos).

Não obstante tais lições, no caso concreto, os membros do Poder Judiciário e Ministério Público parecem ter preferido seguir o caminho descrito pelos Beatles na canção cujo trecho serve de epígrafe a este texto. E os “FAB Four” tinham absoluta razão: viver com os olhos fechados, entendendo errado tudo o que se vê realmente é fácil. Sem dúvida, mais fácil do que encarar a realidade e tentar mudá-la.

Afinal, responda você, caro leitor, em que mundo prefere viver: num onde a polícia tortura e forja confissões de acordo com suas próprias convicções ou naquele em que criminosos, embora capazes de estuprar e matar cruelmente, acabam tendo a honestidade de confessar aos seriíssimos e respeitadores policiais (ainda que depois estraguem tudo, ao inventarem essas histórias de tortura nos interrogatórios judiciais)?

Se você escolheu a segunda opção, talvez entenda por que magistrados e promotor tenham feito a mesma escolha, fechando os olhos e entendendo errado o que viram. Tinham diante de si três jovens dizendo que assinaram confissões falsas sob tortura e viram três criminosos perigosos e mentirosos. Seria quase compreensível, não fosse a natureza de seus cargos, que não lhes permite fechar os olhos e escolher o mundo em que vão viver e as gravíssimas conseqüências de tal postura, para esses e muitos outros réus.

A única alternativa a esta hipótese de “cegueira voluntária” é bem pior e, por isso, impossível de se acreditar: teriam admitido a possibilidade de os réus terem sido torturados, mas, acreditando-os culpados, simplesmente não teriam se importado, quer por achar que os fins (obter a confissão) justificam os meios, quer por não achar de todo injusto que supostos criminosos confessos recebessem “um castiguinho a mais”, deliberadamente ignorando que o ordenamento jurídico não distingue se a vítima de tortura é ou não culpada de algum crime.

Como não se pode admitir tal alternativa, só se pode concluir que, realmente, ninguém quis enxergar o óbvio, que os rapazes foram torturados, tornando suas confissões imprestáveis (como, de resto, deveriam ser todas as confissões e provas policiais não-confirmadas em Juízo).

É verdade que há notícias a respeito de uma testemunha que teria ouvido os três rapazes conversarem entre si, supostamente sobre o crime, dizendo algo como “era só para ter dado um corretivo nela”.

Porém, dada a falta de divulgação de maiores detalhes, não se pode deixar de indagar se tal testemunha foi ouvida em Juízo, com todas as garantias do contraditório, esclarecendo, compromissada, exatamente em que circunstâncias teria presenciado tal declaração e, nesse caso, se já foram tomadas providências para apurar a possível ocorrência do crime de falso testemunho. Ou se, por outra, trata-se de testemunha apenas referida pelos policiais, ou ouvida só na fase inquisitorial, possivelmente sem identificação ou qualificação apropriadas. Infelizmente, não seria o primeiro caso desse tipo de que se tem notícia; mas, se for esse o caso, melhor seria nem mencionar essa “prova”, para não tornar ainda mais embaraçosa uma situação já delicada.

Por fim foi divulgada uma última “prova” que teria pesado contra os réus: uma testemunha, próxima ao local do crime, teria ouvido um barulho semelhante ao estouro de um escapamento com defeito, defeito este apresentado pelo carro de um dos réus. Haveria muito a dizer a respeito das fragilidades de tal circunstância como elemento probatório, mas não se fará isso aqui.

Primeiro, porque tais fragilidades são óbvias demais; mas principalmente porque esta não é uma peça de defesa dos réus, mas uma tentativa de descobrir onde e porque o sistema falhou.

Portanto, só cabe dizer que, quando se ignora a presunção de inocência, qualquer migalha que nada provaria se o ônus da prova fosse mantido com a acusação acaba servindo para confirmar a ilegalmente presumida culpa do acusado.

Só nos resta lutar para chegar o dia em que, ao invés de Strawberry Fields, possamos nos remeter a It’s a Wonderful World.

Alexandra Lebelson Szafir
Advogada criminalista em São Paulo e membro fundadora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa - IDDD

Boletim IBCCRIM nº 191 - Outubro / 2008

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