quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Artigo: Em pleno Estado Novo, STF estigmatizou o art. 594 do CPP

Uma das fontes, disserta Romeu Pires de Campos Barros, em que parece ter-se inspirado o nosso legislador de 1941, apontada até por comentadores do nosso estatuto processual, é o Código de Processo Penal italiano, promulgado a 19 de outubro de 1930 (Processo Penal Cautelar, p. 177, Forense, 1982).

Palpitavam no nosso estatuto processual, entre as marcas típicas dos ordenamentos jurídicos que têm a liberdade individual resumida à simples concessão estatal, os arts. 312 e 594 do Código de Processo Penal brasileiro. O primeiro dos dispositivos consagrava a odiosa prisão preventiva compulsória. O último, destinava para a hipótese dos delitos mais graves, a obrigatoriedade do recolhimento ao cárcere para apelar. Na mesma trilha, nos procedimentos dos crime de competência do Júri, o art. 408, § 1º, nos casos de pronúncia, decisão próxima da sentenza instrutoria italiana.

A prisão preventiva obrigatória e automática foi, vinte e seis anos depois, banida pela Lei nº 5.349/67. O art. 594, por seu turno, foi amenizado com a prerrogativa da apelação em liberdade para os réus primários e de bons antecedentes, assim reconhecidos na sentença condenatória. Nos últimos tempos, leis como a nº 9.043/95, que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, caracterizadas pela ideologia do direito penal do terror, arremessam-se contra a Constituição.

Nos limites do presente, pode-se dizer que o art. 594 resulta revogado, salvo para aqueles, consoante a arguta análise de Alberto Silva Franco (Crimes Hediondos, p. 192/3, 3ª ed., RT), que fecham os olhos a uma nova realidade jurídica e desconhecem, "por preconceito ou ideologia política autoritária, o sentido e o conteúdo do princípio constitucional" (presunção de inocência). No seu fundamental Direito de Apelar em Liberdade, Luiz Flávio Gomes, em exaustiva e judiciosa análise, conclui pela revogação do repulsivo dispositivo, seja porque não foi recepcionado pela Constituição/88, "tendo em vista os princípios do contraditório, da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição" e, assim não fosse, "perdeu a eficácia diante do art. 8º, 2, 'h' da Convenção Americana sobre Direito Humanos, que vigora e é obrigatória no Brasil desde 09.11.92" (p. 137, 2ª ed., RT).

Tais estudos sugeriram pesquisas do art. 594 na jurisprudência do passado. Deparamos com julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no qual foi relator o saudoso desembargador Nicolau Mary Junior, no julgamento de recurso em sentido estrito, abordando a inteligência dos arts 594, 392, III, 581, XV, e 583, III, do Código de Processo Penal, no qual se situou: "Recurso Crime - Apelação - Interposição pelo patrono do réu foragido. Curso, contudo, somente após a apresentação daquele à prisão - Recurso Provido - Inteligência dos arts. 594, 581, XV, e 583, III, do Código de Processo Penal. Se a finalidade da intimação da sentença ao patrono do réu ausente é a do oferecimento da apelação, não tem sentido, pois, se interpretar o art. 594 do Código de Processo Penal como impeditivo do recebimento da apresentada. Impõe-se, conseqüentemente, harmonizar-se o dispositivo em tela com o art. 392, III, admitindo-se a apelação interposta, cujo curso, porém, ficará sobrestado até a prisão do réu" (RT 516/375).

O acórdão é de 1977 e se baseia em julgamento do Supremo Tribunal Federal, transcrito por Espínola Filho. No dia 14 de maio de 1943, ou seja, em pleno Estado Novo, o Pretório Excelso, num dos seus grandes momentos, foi empolgado pelo debate pertinente ao antagonismo entre o art. 594 e 392, III, ambos do CPP. A matéria entusiasmou e dividiu o STF, sendo concedido o "habeas corpus", que ensejou os debates, por voto de desempate. O relator Ministro Castro Nunes negava a ordem, embora reconhecendo que de "fato os dois preceitos legais são de difícil conciliação", inadmitindo que o réu, revel ou foragido, rebelde à autoridade da Justiça apele e somente meses ou anos depois se apresente para o julgamento de apelação. Discrepou, votando a seguir, o Ministro Philadelpho Azevedo, fixando que do "contrário, a lei daria esse direito e retiraria ao mesmo tempo". O voto seguinte acompanhava o relator. Vale destacar parte do judicioso voto do notável Orozimbo Nonato: "Realmente, a regra do art. 594 é tradicional. Poder-se-ía entender que o dispositivo do art. 392, ao determinar a intimação na pessoa do procurador, apenas o fizesse para que este, na falta do constituinte, tomasse as devidas providências a fim de o informar do que se passava. Acontece, porém, que este entendimento restringe demasiadamente o papel do advogado, que não é simples informante do que se passa no processo, mas que, armado de procuração, pode fazer as vezes do cliente e usar de razões de recurso. De maneira que o dispositivo do art. 392 dá a entender, ao mesmo tempo, que o defensor terá o direito de apelar, ainda que foragido o seu constituinte. Como conciliar? Parece que o voto do Sr. Min. Philadelpho Azevedo atende às aspirações de liberdade e às garantias da sociedade: – dá-se o direito ao advogado de apelar; mas a apelação não seguirá, sem que o recurso esteja seguro com a prisão do réu. Qual o prejuízo da Justiça, neste caso? Nenhum" (Código de Processo Penal Anotado, p. 205 e segs. edição histórica da Ed. Rio, vol. VI).

Houve outra decisão no mesmo sentido, sublinhando o relator Orozimbo Nonato que ficam resguardados os interesses da defesa que a lei assegura mesmo aos foragidos. Refere Espínola Filho que o Tribunal de São Paulo não se rendeu à orientação dos julgados do Supremo e o entendimento restou modificado. Poder-se-ía, como diria Silva Franco, afirmar que durante longo tempo se sedimentou mais um daqueles falsos truísmos dos quais não está livre o Processo Penal.

Anote-se que o Código de Processo Penal Militar, na linha do anteprojeto Tornaghi, acolhe a orientação da histórica decisão do Supremo Tribunal. Nos limites desta nota, impossível maior desenvolvimento do tema. René Ariel Dotti e Ada Pellegrini Grinover poderiam retomá-lo.

Não estivesse revogado ou sem eficácia o art. 594 em exame, à luz da Constituição (art. 133) que situa o advogado como indispensável à administração da Justiça, a questão retornaria ao debate, perseguindo-se a conciliação daqueles mandamentos e atentando-se para o devido processo legal, para o duplo grau de jurisdição. Por maior menos prezo que se dê à Lei Fundamental, tantas vezes interpretada com base no direito ordinário anterior, o advogado poderia ser reduzido à condição análoga à de medíocre estafeta?

Antonio Carlos da Gama Barandier
Advogado criminal e professor de Processo Penal da Faculdade Cândido Mendes, RJ)

BARANDIER, Antonio Carlos da Gama. Em pleno Estado Novo, STF estigmatizou o art. 594 do CPP. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.42, p. 05, jun. 1996.

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