quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Artigo: Corpo esculturado, mente insana

O corpo é o primeiro condicionador de nosso modo de ser, fonte da carência e da dor, da satisfação e do prazer, com o qual nascemos e em razão do qual morremos.

O corpo não pode ser tomado como objeto, pois é a forma de estar-aí-no-mundo, por via da qual a pessoa se identifica, vive e é única ao morrer, como diz Habermas, razão pela qual tanto preocupa a coisificação do corpo que a clonagem sugere.

O corpo, na religião cristã, assumiu um papel essencial. Deus, por seu filho Cristo, se fez homem, tomou corpo e como tal sofreu, foi crucificado, sangrou nas mãos e nos pés pregados à cruz, foi-lhe cravada uma coroa de espinhos na cabeça. Morto, ressuscitou no terceiro dia. Retomou o corpo e subiu aos céus. Instituiu o sacrifício incruento do corpo de Deus na missa, na qual, pela transubstanciação, se têm presentes o corpo e o sangue puro de Cristo.

Se, conforme a Bíblia, do pó viemos ao pó retornaremos, Cristo deixou-nos, no entanto, a promessa da ressurreição dos corpos no final dos tempos, restando saber, como indagavam os teólogos medievais, se a ressurreição é a do corpo sadio ou no estado em que se faleceu. Todavia seria sempre a glorificação do corpo, tão controlado em busca da salvação.

Efetivamente, sob a força da Igreja, o corpo foi considerado, na Idade Média, um objeto propício à ação do diabo. Assim, dever-se-ia reprimir o corpo em seus desejos e supliciá-lo para elevação do espírito, pois não é senão a prisão e o veneno da alma, conforme lembra o medievalista Jacques Le Goff.

O pecado original deixa de ser, na Idade Média, a vontade do saber simbolizado na maçã da árvore do conhecimento para se transformar em pecado sexual. Passou-se, então, a controlar o corpo em suas manifestações, para assim dominar a sociedade: proibir as práticas sexuais em boa parte do ano, reduzi-las ao fim da procriação, punir a luxúria, a homossexualidade, reprimir a gula e desprezar o trabalho manual. As mortificações são necessárias à salvação, pois o pecado se combate com cilício e jejum.

O trabalho manual era próprio dos servos da gleba. O esforço físico na labuta da terra não era próprio dos religiosos, que, para salvar a si e a todos, recolhem-se na oração, na ociosidade monástica.

Na prática de crimes, as punições recaem sobre o corpo: mutilação, açoites, morte, com menos ou mais sofrimento - enforcamento, degola, roda. A prisão era tão-só medida garantidora da futura execução da pena. A prisão priva a liberdade do corpo, age em torno, mas não impõe sofrimento físico, porém não deixa de atuar sobre o corpo ao retirar a liberdade de ir e vir. Seria uma guilhotina seca, sem sangue, com domínio sobre o corpo.

Mesmo o movimento revolucionário imbuído das idéias da liberdade e da igualdade, movido pelo pensamento iluminista, a Revolução Francesa, instituiu um dos momentos mais tenebrosos da história, o Terror, agindo por intermédio do Comitê de Salvação Pública que, apenas em 17 de junho de 1794 (29 prairial no calendário revolucionário), mandou para o cadafalso, para a guilhotina, sem direito de defesa, 54 pessoas. A repressão fanática cortando cabeças em nome da liberdade.

Entre nós, até a abolição dos escravos, em 1888, o trabalho manual era próprio dos não considerados pessoas, mas coisas, objetos comercializáveis, um componente corporal. O ser humano transformara-se, na escravidão, em força destituída de direitos, a ponto de entender o Tribunal de Apelação de Pernambuco que jovem escrava estuprada por seu dono não podia, na ação criminal, ser representada pelo Ministério Público, como pessoa miserável, pois, se era miserável, no entanto, não era pessoa.

Depois da destruição em massa das grandes guerras e do lançamento da bomba atômica no Japão, a geração dos anos 60 buscou na contestação instaurar a concórdia, sob o lema "paz e amor". A pílula libertou a sexualidade, as mulheres se impuseram na sociedade como senhoras do seu destino e do seu corpo. Podia-se imaginar uma libertação para que corpo e espírito convivessem em harmonia.

Engano. A exterioridade prevalece, na atenção angustiada ao corpo. Há nova forma de escravidão. Tornam-se escravos do corpo, que escraviza ao ser endeusado como escultura a reproduzir os modelos construídos pelas celebridades: um desespero a cada grama a mais denunciado pela balança.

Médicos revelam a angústia de mulheres de 30 anos e mesmo de adolescentes em colocar silicones, em injetar substâncias químicas para dar a forma almejada. Uma estria, uma cirurgia, além do desejo de engrossar os lábios ou alisar pequenas rugas com "botox", desejosas do impossível, fantasiando ser clones de Angelina Jolie. As mães transmitem às filhas ainda meninas o fanatismo do culto ao corpo. Garotas sem tempo para ler, para exercitar a imaginação e a fantasia, para se entreter com filmes, com brincadeiras e conversas, dedicadas exclusivamente à ginástica autocentrada em frente ao espelho.

Contrai-se anorexia ou bulimia, da qual uma das formas consiste em comer à vontade para depois provocar vômito, a fim de a comida não ser assimilada, tendo por conseqüência a esofagite, devida à passagem do suco gástrico pela garganta.

Não se está nunca em paz com a própria imagem corporal, com as condicionantes que sua forma natural impõe. Parecem almejar ser cadáveres elegantes, mas sem a visão escatológica da ressurreição dos corpos, num viés materialista do verso de Miguel Torga: "Não passamos de cadáveres adiados."

A aparência predomina sobre a substância. Na nova escravidão, seqüestra-se o espírito: só existe o corpo. E se esquece que os dois, corpo e espírito, devem ser alimentados simultaneamente para uma vida significativa. A busca da beleza escultural como um fim em si mesmo produz mentes insanas, corpos sem densidade.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade
de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

Estadão.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog