sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Milícias: seis por meia dúzia?

“A população local sofria muitíssimo antes com o tráfico, e continua sofrendo muitíssimo com a milícia, porque ali eles meio que governam com mãos de ferro”. Entrevistado nº 12, Campo Grande.



“É a mesma coisa, só é pior porque o tráfico não cobra e eles cobram, têm o império deles lá”. Entrevistado nº 31, Gardênia Azul, Jacarepaguá.



“Eles disseram que iam acabar com negócio de bandido na área, acabar com toda violência, mas eles trouxeram violência”. Entrevistado nº 7, Bangu.



As declarações acima são trechos de entrevistas feitas por pesquisadores do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), com moradores de diferentes comunidades dominadas por milícias, para a pesquisa Seis por Meia Dúzia? Um estudo exploratório do fenômeno das chamadas “Milícias” no Rio de Janeiro.



Além das 46 entrevistas, o estudo realizou um grupo focal com lideranças das comunidades. Para as análises, os especialistas usaram ainda dados do Disque-Denúncia (DD) de janeiro de 2006 a abril de 2008 e matérias publicadas nos jornais O Dia e O Globo de janeiro de 2005 a setembro de 2007.



O objetivo da pesquisa é evidenciar o modus operandi desses grupos armados, a sua abrangência territorial na cidade e a extensão no poder político local. Coordenada pelo sociólogo Ignacio Cano e a advogada Carolina Iootty, ela foi feita com colaboração da ONG Justiça Global e financiamento da Fundação Heinrich Böll. Os resultados estão publicados em artigo de Ignácio Cano no livro Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro, lançado na quinta-feira, 31 de agosto, na Uerj, num debate promovido com ele e outros autores de artigos no livro.

Saudades do tráfico



Entre janeiro de 2006 e abril de 2008, o Disque Denúncia recebeu 3469 denúncias contra milícias no estado do Rio de Janeiro, sendo 84% delas (2.919) no município do Rio, principalmente na Zona Oeste - Campo Grande (258), Jacarepaguá (199), Santa Cruz (169) e Anchieta (167).



De acordo com Ignacio Cano, as denúncias relacionadas a milícias são das mais diversas. Em primeiro lugar, está a extorsão simples (1549 denúncias), seguida de desvio de conduta (1532), posse ilícita de arma de fogo (992), homicídio consumado (507), ameaça (445), tráfico de drogas (381) e radio, tv e telefonia clandestina (324), entre outras. “Isso desfaz o mito de que a milícia seria uma alternativa ao tráfico”, disse Cano.

Já a freqüência das matérias de jornal mostram uma atenção cíclica ao problema, que se manifesta também no número de denúncias: elas aumentam e diminuem juntas. “Há uma tendência de se olhar a segurança pública assim no Rio”, disse Cano.



O professor explicou que não existe uma noção consensual do que seja milícia. Para o estudo, foi considerada milícia a confluência simultânea de cinco eixos: controle de território e da população que nele habita por parte de grupo armado irregular; medidas de coação; lucro individual como motivação dos integrantes dos grupos; discurso de legitimação da proteção aos habitantes e da instauração de uma ordem; e a existência de integrantes agentes da lei.



Cano observa que destes cinco eixos, os três primeiros são compatíveis com o tráfico de drogas. As diferenças estão nos dois últimos. Ele explica que a milícia se apresenta com um discurso de alternativa ao mal, enquanto o tráfico não precisa de legitimação, já que se justifica pela força. “Os milicianos aspiram compor uma ordem do bem. As milícias seriam ‘um mal menor’, nas palavras do prefeito César Maia”, disse o professor. Já a participação aberta de elementos do estado serve de alavanca de legitimação dentro da comunidade. “O miliciano faz questão de dizer que é policial”, acrescentou.



A pesquisa confirmou o que já se sabia: a atuação das milícias divide opiniões. “Alguns apóiam, outros aceitam e outros têm saudades do tráfico. O pagamento de taxas causa resistência, mas com uma mínima pacificação que seja a milícia terá apoio”, conta Cano. Para o professor, a dominação é um neofeudalismo, com o arbítrio do senhor local sobre as pessoas a partir do seu poder armado. “A segurança do cidadão passa de direito a mercadoria. O poder público fracassa em impor a lei porque o sucesso seria ruim economicamente a alguns de seus membros”, denunciou.



Críticas a execuções e mapa da influência de grupos armados

Além de tratar da expansão das milícias e do seu braço político no Estado, o livro traz artigos que debatem outras questões cruciais da segurança pública no Rio de Janeiro, como o processo de mudança na economia política do crime, as disputas de território entre o tráfico de drogas e os seus modos de coerção, a intensificação da violência de Estado e o processo de privatização da segurança pública.



No artigo Discursos e Práticas na Construção de Uma Política de Segurança - o caso do governo Sérgio Cabral Filho (2007 – 2008), a Justiça Global discute a construção de uma política de segurança pública pautada no “enfrentamento”, que tornou comuns as violações de direitos humanos e execuções sumárias cometidas pela polícia, como demonstrou o relatório preliminar da visita ao Brasil do Relator da ONU para Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais, Philip Alston.



O artigo analisa algumas manifestações públicas do governador e do secretário de segurança José Mariano Beltrame e evidencia as estratégias para efetivar “ações de guerra” que foram responsáveis pelo aumento significativo dos chamados “autos de resistência”, termo utilizado para registrar casos de civis mortos durante suposta resistência à prisão seguida de confronto. Esse termo não tem embasamento do Código Penal brasileiro.



O texto do Observatório de Favelas, Grupos Criminosos Armados Com Domínio de Território - reflexões sobre a territorialidade do crime na região metropolitana do Rio de Janeiro, trabalha com este conceito de “domínio de território” para analisar as práticas realizadas pelo tráfico de drogas e pelas milícias; mapeia a influência desses grupos em diversas comunidades do Rio de Janeiro e propõe políticas públicas de segurança e de direito que têm por objetivo a transformação do cenário conflagrado de violência da cidade.



Capitalismo dependente e direitos humanos uma relação incompatível, de Roberto Leher, amplia o debate ao relacionar as atuais políticas de segurança para a América Latina com o processo histórico de formação dos Estados nacionais no continente. O modelo de controle social, exemplificado no “Plano Colômbia”, encontrou seguidores no Rio de Janeiro e tem resultado em violações de direitos humanos vinculadas à criminalização da pobreza e dos movimentos sociais.



Em Associações de Moradores de Favelas e Seus Dirigentes - o discurso e a ação como reverso do medo, o Instituto Brasileiro de Análises Socioeconômicas (Ibase) apresenta e discute as percepções de lideranças de movimentos sociais - principalmente lideranças ligadas às associações de moradores de favelas - diante de suas possibilidades de ação no contexto político atual no Rio de Janeiro, da tensa relação com o tráfico de drogas, e dos limites da representação política nas favelas cariocas.



No artigo Milícias - Mudanças na Economia Política do Crime no Rio de Janeiro, que avalia o surgimento dos grupos de extermínio na Baixada Fluminense nas décadas de 1970-80, José Cláudio Alves Souza também problematiza o fenômeno das milícias na cidade do Rio de Janeiro.



Para o autor, as milícias e os grupos de extermínio são evidências da tolerância do Estado para com a participação de seus agentes no domínio militar das áreas pobres, o que possibilita o avanço de certas atividades criminosas e funciona de maneira complementar à prática de execuções sumárias adotada por sua política de segurança. As redes do crime são analisadas no emaranhado que abrange a mão de obra barata para o tráfico de drogas, os grupos econômicos e políticos envolvidos, e, claro, o Estado.

Comunidade Segura.

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