terça-feira, 2 de setembro de 2008

A Justiça que queremos

O Estado Democrático de Direito prevê tratamento igualitário a todos os cidadãos, mas o sistema penal brasileiro é uma prova de que na prática isso não acontece. A desigualdade de tratamento da Justiça não se restringe àqueles que se enquadram no principal estereótipo do criminoso: jovem, negro, favelado. Estende-se a prostitutas, travestis, população de rua, sem teto, sem terra e outros excluídos da sociedade e do governo.

Mas isso precisa mudar, e o grito dos movimentos sociais começa a ser ouvido, pelo menos por alguns magistrados. Numa iniciativa pioneira, a Associação dos Juízes para a Democracia, com o apoio da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), convidou líderes de movimentos sociais, pesquisadores, advogados e um delegado para ouvir seus diagnósticos no seminário “A Justiça que queremos”, realizado na sexta-feira, 15 de agosto, na sede da Emerj, no Fórum do Rio.

Recebidos pelo desembargador Siro Darlan, que destacou a missão do Judiciário de garantir os direitos humanos, o acesso à Justiça e o tratamento igualitário, os palestrantes sentiram-se à vontade para criticar as atuações de juízes e desembargadores em causas específicas e relacioná-las a modos de pensar que favorecem sempre um lado: o dos ricos.

Na abertura, o compositor MV Bill e Maria Jacintho, mãe de uma vítima da violência, deram seus testemunhos dos dramas que viveram. Em seguida, o delegado Orlando Zaccone, titular da 52ª DP, Nova Iguaçu, falou da seletividade punitiva do sistema, que criminaliza a pobreza.

Para Zaccone, autor do livro "Acionistas do Nada - quem são os traficantes de drogas", a distorção começa na própria definição do criminoso, associada ao estereótipo do jovem, negro, favelado. Segundo o delegado, a mídia reforça este estereótipo, fazendo referências à favela de forma negativa. Em pesquisa que realizou para o seu mestrado, Zaccone levantou que mais de 90% dos autuados por tráfico no Rio são presos sem armas, apesar da imagem que se tem do traficante armado até os dentes. Segundo ele, o sistema penal acaba punindo os mais vulneráveis entre os envolvidos no negócio.

As ações da polícia nas favelas também estiveram na pauta. Para o professor Marcelo Burgos, do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, a polícia é só um espelho da política: se a política mudar, a polícia também muda. “Deu-se salvo conduto para a polícia entrar na favela e fazer o que quiser”, criticou. Ele sugere que no lugar da imposição da força, abram-se canais de comunicação com a favela, que está mais qualificada e educada.

A coordenadora do Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Maria de Lourdes Lopes, lembra que as favelas surgiram da ausência de compromisso com a geração de moradia. Para ela, pensar reforma urbana é discutir as contradições capitalistas da cidade e ir na contramão até do poder judiciário. “Não aprendemos direito como lei. A nossa referência é felicidade, dignidade. Lutamos para construir o nosso direito”, explicou. Segundo a líder, as causas são julgadas na lógica da cidade, que é a mercadoria. “Quem não tem dinheiro anda a pé”, disse.

Maria de Lourdes deu como exemplo o direito de ocupação de um prédio vazio. “Quem tem o direito de ficar? A especulação imobiliária ou quem não tem onde morar?”, questiona.

O diretor do Movimento dos Sem Terra, João Pedro Stédile, seguiu na mesma linha de argumentação: “A terra é um bem da natureza. Ninguém deveria poder utilizá-la para explorar os outros.” Stédile lamentou que o país tenha perdido tantas oportunidades históricas de fazer reforma agrária: com o fim da escravidão, com a revolução industrial, na década de 60, com a proposta de Celso Furtado, na Nova República, quando não ocorreu o anunciado assentamento de mais de um milhão de famílias e agora no governo Lula, no qual, segundo o líder do MST, aumentou o processo de concentração da propriedade de terra, em vez da distribuição.

“Por que está inviabilizada a reforma agrária no Brasil, se há lei? Nunca há uma liminar a favor de pobre?”, desafia.

O advogado João Luiz Duboc Pinaud, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), acha muito importante o Judiciário querer ouvir os movimentos sociais. “Além das fórmulas legais, o juiz deve buscar o conteúdo ético”, disse. Ele elogiou a atuação da Associação dos Juízes para a Democracia, que busca “abrir as portas da Justiça” e concluiu: “O Judiciário deve fazer a pedagogia da cidadania.”

O desembargador Antonio Eduardo Duarte disse que o juiz deve fazer com que Justiça não esteja distante dos excluídos. “A Justiça que queremos é igual para todos, ricos ou pobres, sem diferença de classe, mas sempre atenta ao menos favorecido”, definiu. Ele defendeu que se faça justiça social, desassociada do grilão legal. Segundo ele, sem contornar a lei, o juiz pode tentar fazer a melhor justiça.

Para o advogado Carlos Nicodemos, do Projeto Legal, o direito hoje é reducionista, tecnocrata, pouco humanista e higienista, na sua lógica de limpar as ruas de crianças, adolescentes, prostitutas e travestis.

“As pessoas são recolhidas arbitrariamente, no seu direito de estar em local público”, disse Nicodemos, a respeitos das operações CopaBacana e BarraBacana, do Governo do Estado.

O excesso de prisões também esteve na pauta da socióloga Julita Lemgruber, diretora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes (Ucam). Ela criticou o crescimento da população carcerária no Brasil, que mais que dobrou entre 1995, quando havia 148.760 presos, e 2007, com 422.590 – a quarta população carcerária do mundo em números absolutos. Em junho de 2008, o número de presos já estava em 439.737, sendo 86% em penitenciárias e 14% em delegacias. Como há déficit de vagas, optou-se por construir mais penitenciárias.

“Há um poço sem fundo. As ações da polícia prendem mais gente e os prisioneiros recebem penas mais longas. Há mais prisões que liberações. É um funil - a entrada é maior do que a saída”, atestou.

Julita mencionou também o grande número de penas alternativas, que superou o número de presos: 498.729 até junho de 2008. Somando as penas alternativas e prisões, são 938.466 pessoas sendo supervisionadas. “Quase um milhão!”, enfatizou Julita. E continuou: “As penas alternativas estão substituindo o encarceramento ou aumentando a rede de controle social? Não estamos substituindo, estamos somando, e essa estrutura de supervisão custa ao estado também.”

A socióloga lamentou a pequena presença de juízes e desembargadores no evento. “Existem no Rio quase mil, mas hoje aqui só há 20. Pelo menos os juízes criminais – há cerca de 300 – podiam estar aqui para discutir a produção do seu trabalho”, criticou. Último palestrante do dia, o octagenário advogado Modesto da Silveira, buscou a harmonia: “Julita, este seminário já é um excelente começo, é um grande avanço para semear a Justiça que nós da sociedade queremos. Provavelmente algum fruto vai dar”.

O advogado recomendou às liderenças que se movimentem, para que a próxima geração possa ter uma Justiça diferente. “Vale a pena a sociedade civil fazer o que está fazendo”, incentivou. Já aos juízes democráticos ele recomendou que observem as lacunas da lei para que possam fazer diferença no legislativo federal.

Modesto da Silveira, o mais notório advogado de presos políticos no Brasil, que foi menino lavrador sem terra e pedreiro, fechou o evento com filosofia:

“Somos todos diferentes, até de nós mesmos, a cada ano que passa. Respeitando as diferenças tudo se transforma, sempre”.

Comunidade Segura.

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