quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Artigo: Você contrataria um “adolescente infrator”?, por Montserrat Martins*

“O ser humano é o que ele produz em atos.”

Jean-Paul Sartre

Educação tem sido a palavra-chave apontada como o principal investimento a ser feito para uma sociedade menos violenta. Centenas de ONGs e instituições públicas e privadas têm promovido ações culturais e educativas diversificadas. Bem menos se ouve falar, no entanto, em iniciativas de inclusão social pelo trabalho, ou em cursos profissionalizantes.

A Fase (ex-Febem) gaúcha, uma das melhores do Brasil, tem proporcionado o estudo que os jovens internados negligenciavam na rua. Mesmo assim, quando saem da Fase com o Ensino Fundamental (ou até o Ensino Médio) completo, eles com freqüência recaem em vínculos com o crime organizado que lhes dá “empregos” relativamente bem pagos, no tráfico. A Fase, em contraste, encontra dificuldades para ajudar a inserir os adolescentes maiores de 16 anos em estágios em empresas.

Vivemos numa cultura de “dependência do Estado”: acreditamos que o Estado é responsável por tudo. Falta-nos a noção clara de “sociedade civil”, de que todos nós criamos e mantemos o mundo em que vivemos. Nem a Fase, nem o governo – seja qual for – tem condições de responder a todos os problemas sociais, a própria sociedade como um todo tem de assumir suas responsabilidades. A falta de oportunidades práticas de trabalho para nossos jovens, portanto, deve ser encarada como um desafio para todos nós.

Ações criativas de inclusão social podem acontecer mesmo num contexto adverso, como já ocorreu, por exemplo, com a instalação de uma confecção de roupas pelas moradoras do Morro da Cruz, em Porto Alegre, ou com a atividade de pintura artesanal de sapatos numa indústria, por presidiárias de Minas Gerais. O estudo, a aprendizagem teórica, é importante, mas quando não leva a uma perspectiva de sustento pode resultar em frustração. É através do trabalho e da valorização deste que se gera a auto-estima, na prática.

Uma sociedade que prega a educação, mas que ainda não tem criatividade para gerar oportunidades concretas para os grupos sociais com menos recursos, corre o risco de contribuir para que o crime organizado se torne mais “inteligente”. Este é alimentado, paradoxalmente, pelo conhecimento que os jovens recebem das instituições, sem que as redes sociais envolvidas nos programas educativos e culturais consigam aproveitar as suas capacidades de trabalho. Não é à toa que já foi encontrada uma central de tráfico, num morro de Porto Alegre, que monitorava a região através de imagens de satélite pelo Google Earth.

O crime não é uma escolha inevitável para pessoas em dificuldades. Nem as tentações de “dinheiro fácil” são irresistíveis. Os fatores psicológicos (inconscientes) que motivam a delinqüir incluem a necessidade de se sentir “importante”, valorizado e principalmente “capaz” de realizar atividades práticas, exercitando a inteligência e assim também aumentando a auto-estima. Pois uma auto-imagem satisfatória depende de ações nas quais a pessoa possa desenvolver suas habilidades.

Muitas vezes, ao conhecerem teorias éticas – com implícitas obrigações morais – sem oportunidades correspondentes de exercício da cidadania, tais pessoas se sentem psicologicamente desvalorizadas como uma criança recebendo uma “lição de moral”. A famosa frase daquele considerado como o maior filósofo do século 20, “o ser humano é aquilo que produz em atos”, se refere a nossas escolhas morais. Mas, diferentemente do “penso, logo existo” cartesiano, coloca a ênfase não nas idéias, e sim nas ações. Pois é nelas que se afirma, através das vivências, a identidade pessoal. Assim como Daiane dos Santos, encontrada por uma treinadora ao acaso, numa pracinha, quantos talentos nas mais diversas áreas não estão por aí, esperando para serem descobertos?

*Psiquiatra do Juizado da Infância e da Juventude

Zero Hora.

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