quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Artigo: Uma proposta para a descriminalização do aborto

O Código Penal brasileiro se encontra em fase de elaboração da sua nova parte especial. Nesta tarefa, dentre muitos temas a serem examinados está o aborto, que atualmente é regulamentado pelo artigo 124 ao artigo 128, do referido código, incluído no capítulo dos crimes contra a vida.

Até o presente, o ato de provocar o aborto tem sido considerado crime, no nosso ordenamento penal, com a fundamentação básica de que o objeto que a lei protege é o direito à vida. Partindo desta premissa de lege data, qualquer tentativa de demonstrar o benefício da descriminalização deve levar em conta o argumento básico das várias teses contrárias ao aborto de que a sua prática atenta contra a vida.

A base teórica para os posicionamentos abolicionistas deste trabalho, contrárias às teses referidas, é o entendimento de que cabe ao Direito Criminal normatizar, apenas, as condutas, relevantemente significativas para a sociedade, ou seja, aquelas que, em qualquer ordenamento jurídico, seriam consideradas criminosas. A previsão criminal, nesta ótica, se concentra nos bens jurídicos, cuja relevância seja patente. Esta linha de pensamento está de acordo com as correntes do "abolicionismo", da "intervenção mínima" e das teorias denominadas de "civilização" ou da "descriminalização".

Através das correntes e teorias mencionadas, o aborto não deveria ser visualizado como crime, visto que se ainda é tido como delito no Brasil, não é assim considerado nos principais países do Primeiro Mundo, citando como exemplos França, Inglaterra, Suécia, Itália, Holanda e outros. E mais: o aborto é até incentivado em alguns países de forte contingente populacional. Daí, a constatação que se chega é a de que o aborto não é uma conduta, absolutamente, criminosa para quaisquer sociedades como são as de "colarinho branco", os crimes ambientais e os delitos contra o patrimônio em geral. Ao contrário. No Brasil, não fosse por razões da forte influência da Igreja Católica de onde, sem dúvida, vem o maior peso da pressão para não o descriminalizar, a visão delituosa seria, seguramente, eliminada. No entanto, em qualquer sociedade que se imagina democrática é inadequado admitir-se que posições originadas de convicções pessoais, de fundo religioso e ético, sejam impostas ao total desta mesma sociedade. Não vai longe o exemplo do divórcio, que consumiu tanta energia e que está na esteira do mesmo argumento. Até que a sociedade chegue a esta conclusão vários são os argumentos "pró-vida", tais como: a proteção jurídica para o feto, ser vivo; a concordância da mulher para abortar não é causa de exclusão de crime; não há direito e liberdade absoluta da mãe em relação ao feto, pois ela é limitada pelo direito do outro, pelo interesse social, e muitos outros.

Os argumentos acima enumerados se baseiam na proteção à "vida" como ponto em comum, todavia, nem o Direito Romano visualizou a questão por esse ângulo. O aborto violava o direito do pater familians à prole e à integridade física de sua mulher, pelo risco que o ato poderia oferecer. A punição, também, era vinculada ao aborto não consensual, não se cogitando, no entanto, de proteção ao feto. Em primeiro lugar vida não é só fato, mas valor. Vida com dignidade. Existe maior violência do que uma gravidez ou parto indesejado? Também por esta razão alguns estados norte-americanos consideram o ato de abortar, voluntária ou involuntariamente, esfera da privacidade da mulher. O oposto seria considerar o seu corpo a serviço do Estado e do interesse social. Mas ao contrário, à mulher deve ser dado o direito de decidir de acordo com as suas circunstâncias pela opção reprodutiva. A matéria não deveria ser estatal, mormente no Brasil onde a saúde pública não assegura as mínimas condições de sobrevivência para a maioria da população. Torna-se, deste modo, inadmissível exigir-se que a mulher que venha a engravidar tenha, compulsoriamente, o filho, quando isto não inclui apoio da ordem pública (garantia de educação e saúde, por exemplo).

A maternidade é cobrada, neste contexto, como interesse coletivo e social e, no entanto, depois do nascimento do filho a responsabilidade daí decorrente, em muitos casos, é somente da mulher, que não conta, muitas vezes, nem com o pai que proporcionou a concepção. Dentro desta ótica, evidencia-se mais um aspecto da história de repressão e culpa sobre a mulher. Eticamente, o Estado não deveria usar a lei penal para exigir algum nascimento. Gestar e ter filhos, na miséria ou com dignidade deveria, pelo menos, em tese, ser uma opção individual. Além do mais, a repressão aumenta a clandestinidade, obviamente, trazendo como conseqüência números alarmantes de morbidez e mortalidade maternas, pela seleção das mulheres pobres que são a maioria da população feminina, neste País.

Constitui-se uma falácia posicionar-se contra o aborto legalizado pelo argumento da proteção à vida, principalmente pela existência da legislação penal vigente. A norma permissiva do item II do artigo 128 do Código Penal (o aborto da estuprada) é uma contradição gritante com o capítulo dos crimes contra a vida, onde a aludida norma se localiza. A referida permissão legal não se compadece com o ser "vivo", o feto, por outro lado, não é pessoa, não tem vida própria, nem personalidade civil e, caso seja expulso do corpo materno, mesmo a Igreja não o batiza. Observa-se que a fecundação in vitro é apta a produzir embrião. No caso dele ser destruído seria uma conduta criminosa contra a vida? E a ética, nesse caso, onde estaria?

Sabe-se que o Dispositivo Intra Uterino (DIU) impede o ovo que foi fecundado na trompa de se fixar no útero (conceito técnico de gravidez) e nem por esta razão se pune, criminalmente, que use o referido método que é, sem dúvida, mortífero em relação ao elemento fecundado. Mesmo com a utilização do DIU de cobre, cujo objetivo é o de eliminar os espermatozóides, se algum deles escapar e fecundar um óvulo, existiria a destruição do ovo.

Na base da discussão há o fato de que a reprodução humana, de acordo com as necessidades concretas de cada época, é, sistematicamente, regulamentada, balizada em tabus e normas institucionais, em cujo contexto a mulher é "peça" primordial. E os sistemas punitivos concretos, vale a pena não se deixar iludir, estão a serviço das estruturas a que cabem sustentar.

A repressão penal ao aborto, apenas, convalida esquemas de poder (de grupos religiosos, moralistas do controle estatal) em detrimento dos interesses individuais mais legítimos.

Diante do contexto mundial, o Brasil necessita deste avanço. A descriminalização do aborto, pois, é uma exigência da cidadania.

Angela Simões de Farias
Promotora do Júri do Estado de Pernambuco, professora de Direito Penal da UFPE e Unicap e tem o curso de mestrado pela UFPE.

FARIAS, Angela Simöes de. Uma proposta para a descriminalização do aborto. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.40, p. 04, abril 1996.

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