sábado, 20 de setembro de 2008

Artigo: Sobre Dionísio e a serpente

A visão de mundo renascentista de Montaigne, embora considerasse a embriaguez grosseira e brutal, acreditava-a menos perversa e nefasta do que outros vícios, por não prejudicar diretamente a sociedade. A embriaguez seria bestial e aviltante, mas concernente exclusivamente ao rebaixamento desumanizador do próprio embriagado, fazendo com que fosse um vício não muito condenado na Antigüidade.

Tivesse diante de si os dados de mortalidade no trânsito brasileiro, talvez reformasse parte de seu pensamento, clivando a embriaguez em um grupo de auto-aviltamento e em outro, nefando para a sociedade. O incremento do poderio tecnológico de nossa era, ironicamente, ao conceder maior mobilidade e autonomia ao indivíduo, elevou sua letalidade social. As conseqüências dos prazeres etílicos privados se fizeram transmitir mecanicamente à totalidade do corpo da coletividade, impondo a esta uma incômoda posição de escolha entre os direitos e liberdades do indivíduo e a preservação da coletividade. Premida entre a cruz e a espada, a Lei 11.705 não hesita. Privilegia o direito à vida de todos, à custa da relativa redução do direito individual. Em nome da vida, nada a objetar a essa peça jurídica. Os dados estatísticos colhidos já logo após a implantação da lei ratificam sua função protetora dos direitos de terceiros.

Em nome da mesma vida, contudo, gostaria de realizar alguns apontamentos provenientes da história recente da Medicina, sugerindo muita prudência na apreciação dos resultados e atenção nos efeitos de médio ou longo prazo da lei. Todas as vezes que a serpente Leviatã despertou de seu sono febril e embriagado no fundo do mar para atormentar a liberdade individual, nos últimos cento e cinqüenta anos, observou-se a mesma marola intelectual na superfície das águas. Todas as vezes, esse sismo foi interpretado como mera vitalidade das águas e saudado como uma espécie de “mar bom para surfe”. Devido às limitações deste artigo, veremos apenas duas características desse movimento intelectual:

1. A simplificação de conceitos complexos

Nada mais difícil de se definir do que a embriaguez. O fenômeno do êxtase, etimologicamente significando “saída de si mesmo”, apresenta-se sobre milhares de formas. No orgasmo sexual, no desvario do poder, nas libações alcoólicas, na violência desmesurada, no delírio carnavalesco, no júbilo artístico e em tantas outras situações, a consciência humana tende a dissolver-se em uma experiência de fusão com a totalidade, perdendo suas feições individuais e sua história própria. A bebida alcoólica é, portanto, apenas uma das situações nas quais o êxtase dilui e assimila a potência do indivíduo. A cultura clássica, sabedora do caráter global, intrincado e incontornável da embriaguez, reuniu suas múltiplas formas no mito de Dionísio, constituinte fundamental da humanidade.

A época contemporânea, talvez marcada pela inocência cabotina do positivismo, procurou reduzir essa complexidade da embriaguez a comportamentos simples e unitários, facilmente definíveis, como as toxicomanias e dependências de drogas. Com essa facilitação, pensou qualificar-se para domar um fenômeno que se ancora no mais profundo e perene da natureza humana. Basta um rápido olhar nos dados internacionais recentes, revelando aumento no uso recreativo de álcool e outras substâncias, para uma primeira constatação da irrelevância da pretensão.

Essa simplificação injustificada, no entanto, traz outros problemas, de natureza pragmática, ligados à definição dos conceitos. Limito-me aqui a explicitar apenas um deles, contido na lei. Assim determina a lei, em seu art. 165: “Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência ...”, leva a determinadas punições. Ora, existe uma grave falha técnica, no sentido psicopatológico, neste ponto. Inexiste uma associação necessária entre produção de dependência e a embriaguez propriamente dita que a lei pretende coibir. Por exemplo, um uso eventual abusivo de suco de maracujá pode causar uma sonolência suficiente para inviabilizar a capacidade de condução de veículos automotores. No entanto, até o presente momento, o uso desta fruta não foi inventariado entre as substâncias determinantes de dependência e tampouco proibido pela autoridade legal. O ponto de corte a partir do qual uma substância passa a ser nociva tem pouco a ver com seu poder de vício. A letra da lei, ao preocupar-se excessivamente com a dependência, recende a um moralismo ultrapassado e tecnicamente risível. Seriam inúmeras as situações nas quais comportamentos de risco extremo a terceiros não estariam contemplados pela lei.

Foi esse mesmo princípio de simplificação de conceitos complexos que levou, no século XIX, à tentativa de redução dos enigmas da criminalidade ao aspecto externo das fisionomias, à moda de Lombroso. O século XXI, um tanto mais abstrato, deflaciona as mil faces da embriaguez ao denominador comum do álcool e de algumas drogas psicoativas, esquecendo, por exemplo, que o furor de redenção da sociedade também radica, em última análise, em um entusiasmo dionisíaco.

2. A supressão como solução

A simplificação da visão de mundo, no entanto, seria inócua se encerrada em si mesma. As próprias dificuldades advindas da renitência da realidade fariam com que fossem gradualmente sendo abandonadas medidas como, por exemplo, a Lei Seca norte-americana.

O aspecto nocivo da simplificação mora no favorecimento da noção de supressão como a melhor solução. A lógica é óbvia: uma vez isolado um fato simples como o elemento indesejável a ser debelado, basta extirpá-lo que a solução estará dada. Desta maneira, as concepções eugênicas das primeiras décadas do século XX, ao situarem equivocadamente na germinação humana os defeitos da raça, acabaram levando ao próprio extermínio dos ditos tarados, como no nazismo, ou à esterilização de doentes mentais, como nos atualmente insuspeitos Estados Unidos e Suécia. São conseqüências naturais de certos esquemas de pensamento que, uma vez utilizados irrefletidamente, acabam por arruinar as muitas vezes boas intenções dos seus portadores.

O mesmo se dá no campo da embriaguez. De seu berço hipocrático até meados do século XIX, a medicina interpretou a embriaguez imoderada como fruto da desmesura, da desarmonia das proporções antropológicas. Apenas com o século XX esta passou a ser um simples comportamento indesejável, desligado da noção de adequação ou de proporção, apto, portanto, para ser banido do corpo social. A mesma linha de raciocínio fundamenta as proibições ao tabagismo, à ingestão de certos nutrientes, a certas formas de publicidade etc., numa crescente e perigosa ampliação de comportamentos simplificados tomados como repudiáveis.

Obviamente, a condução de veículos sob o efeito de álcool deve ser catalogada como desmesurada e inapropriada. Porém, a concepção de alcoolemia zero aproxima-se perigosamente da noção de purificação, que tantos efeitos desastrosos impingiu no século XX. Receba-se, portanto, a Lei 11.705 como um ajuste exato às necessidades da sociedade de garantia do direito à vida. No entanto, cautela redobrada, pois qualquer dilatação sua para além do restrito perímetro em que é fecunda pode causar fissuras na superfície — viva como nunca — do ovo da serpente.

Guilherme Messas
Médico psiquiatra; mestre, doutor e pós-doutor na Faculdade de Medicina da USP; e presidente da Sociedade Brasileira de Psicopatologia Fenômeno-Estrutural (SBPFE)

MESSAS, Guilherme. Sobre Dionísio e a serpente. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 13, ago. 2008.

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