segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Artigo: Questionando a Lei nº 9.099

A edição da Lei nº 9.099, de 26 de setembro do corrente ano, foi recebida com bastante entusiasmo por grande parte dos operadores do Direito Penal. Não era para menos, pois, ultimamente, o legislador penal brasileiro vinha procurando solucionar os graves problemas da Nação através de remédios reconhecidamente ineficazes: a supressão de garantias constitucionais, a criação de novos tipos penais e o agravamento do manejo processual de comportamentos já definidos como crime. As críticas às leis penais promulgadas nos últimos anos, bem como as recentes mensagens governamentais, ainda tramitando no Congresso Nacional, já demonstraram, suficientemente, a ineficiência dessa política da "Lei e da Ordem" no combate á criminalidade.

Por isso, o advento da nova legislação representou um bom alento em nosso desesperançado meio.

Sem sombras de dúvidas, a legislação, ora em vacatio é boa. Dentre suas qualidades destacamos: a transformação dos delitos de lesões corporais leves e lesões culposas em crimes de ação penal pública condicionada e a autorização conferida ao Ministério Público para propor a transação penal.

No entanto, sendo a obra em questão fruto da atividade humana e, por conseguinte, passível de imperfeições, questionamos alguns aspectos da nova legislação, pois contrários aos cânones constitucionais em vigor.

As nossas críticas dirigem-se às posturas adotadas pela Lei nº 9.099 na fase preliminar do procedimento e no rito sumaríssimo lá descrito.

. Inicialmente, parece-nos afrontosa ao princípio constitucional da presunção de inocência a denominação escolhida – autor do fato – para designar aquele contra quem se levantam as suspeitas na fase preliminar. Melhor seria a adoção da expressão já consagrada pela legislação ordinária – indiciado – para denominar o sujeito passivo daquela relação procedimental.

O art. 69 da legislação sob comento dispõe que a autoridade policial "lavrará termo circunstanciado e o encaminhará imediatamente ao Juizado, com o autor do fato e a vítima". Muito bem. O vigor dessa determinação legal, inserta na utilização do verbo encaminhar no tempo do futuro do presente do modo indicativo, traz um conteúdo cogente a essa providência preliminar, representando um evidente cerceio da liberdade de locomoção do suspeito, do indiciado ou, como prefere a lei, do autor do fato. Ora, nessa hipótese, não há espressa visão, na Lei 9.099 de que será assegurada ao indiciado, a assistência de advogado, como ocorre na lavratura do auto de prisão em flagrante, em decorrência de comando constitucional.

Evidentemente, esse comparecimento compulsório ao Juizado tem implicações mais graves ao indiciado do que a prisão em flagrante. Essa afirmativa decorre do fato de que, estando presentes o indiciado e o lesado, imediatemente poder-se-á realizar a audiência preliminar, na qual o autor do fato deverá decidir a respeito da composição do dano e da aceitação da proposta de aplicação imediata da pena não privativa de liberdade. Porém, não sendo assegurada a presença de advogado no momento seguinte à elaboração do termo circunstanciado, pois a advertência prevista no art. 68 da referida lei ainda não lhe foi sugerida, o autor do fato pode se deparar sozinho e sem orientação técnica no momento em que é levado compulsoriamente ao Juizado pela autoridade policial.

Existem dispositivos na lei em apreço que, pela sua interpretação sistemática e teleológica, deixam claro que as propostas de composição e de aceitação de pena só serão submetidas ao autor do fato quando presente seu advogado ou defensor público. No entanto, entendemos que o legislador perdeu a oportunidade de reiterar a imprescindibilidade da presença do advogado ou do defensor do indiciado no primeiro momento em que ele é levado ao Juizado, pois redação emprestada ao art. 69 permitirá a ocorrência de excessos contra o autor do fato, privando-o de uma orientação técnica.

O § 5º, do art. 76, não supõe uma inédita situação. Esse dispositivo informa que da sentença a que alude o parágrafo anterior caberá recurso de apelação. Essa decisão é aquela que resulta na aplicação de pena restritiva de direitos ou de multa sem processo. Ora, para que esse veredito seja proferido é necessário que o Ministério Público proponha a medida e que o autor da infração aceite esta proposta. Não havendo sucumbentes, pois o M.P. propôs e o indiciado aceitou, como falar em recurso? Será esse recurso exclusivo do assistente da acusação? Mas, se não há ação, como falar em assistência?

Aliás, ao assistente da acusação não foi reservado qualquer espaço nas decisões que suspendam o andamento do processo, não havendo previsão de sua interferência na deflagração da ação penal. Tolhe-se, portanto, a iniciativa do ofendido, em franco desacordo com a atual tendência de valorizar a vontade de quem foi lesado ou prejudicado por outrem.

O procedimento sumaríssimo prestes a entrar em vigor também não estabelece o momento processual em que deverá ser requerida a produção de prova pericial. A vinda dessa evidência é, não raro, imprescindível para a caracterização de muitos dos delitos abrangidos pela Lei nº 9.099. Daí a importância de ser fixada a oportunidade em que a acusação e a defesa poderão propor a realização dessa ou daquela prova por elas considerada importante para o deslinde da questão.

Por fim, a Lei nº 9.099, através do § 3º do seu art. 89, elegeu como causa obrigatória de revogação da suspensão condicional do processo a deflagração da nova ação penal contra o beneficiário daquela concessão. Porém, essa norma não estabeleceu a necessária distinção da causa do processo subseqüente, isto é: se esse novo procedimento é decorrente de um comportamento criminal doloso ou culposo, uma vez que ambos são capazes de obrigar a revogação do benefício. Tanto um quanto o outro, têm o condão de determinar que o juiz ordene a cessação do período de prova, fazendo com que a ação penal anterior seja reaberta. Evidentemente, não podem ser igualadas as condutas dolosas com as culposas. Mas, de acordo com a nova legislação, a vontade do agente pouco importa, pois é auferido um caráter puramente objetivo a essa questão. Essa ótica representa um rigor excessivo no trato da suspensão condicional do processo.

Como já mencionado linhas atrás, a Lei nº 9.099 é um avanço há muito tempo acalentado pela maioria dos que operam o Direito Penal. Evidentemente, sua vantagens sobrepõem-se às suas desvantagens. No entanto, esse fato é incapaz de impedir que, desde já, haja uma conjuminância dos objetivos da norma ora discutida com as garantias individuais constitucionais, permitindo-se a permanente evolução da legislação penal.

Renato Neves Tonini, Advogado no Rio de Janeiro.


TONINI, Renato Neves. Questionando a Lei nº 9.099. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.35, p. 07, nov. 1995.

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