terça-feira, 23 de setembro de 2008

Artigo: Peculato-furto e concurso de agentes

Do exame dos manuais de Direito Penal, percebe-se que a matéria dos crimes contra a Administração Pública é enunciada de um modo quase padronizado. Por um lado, tal constatação revela que os respectivos temas, em certa medida, já se encontram pacificados. Por outro, infelizmente, indica certa repetição de obras consagradas, sem o necessário refletir dogmático sobre alguns aspectos.

Antes de entrar, propriamente, no tema deste ensaio, destaca-se uma referência reiterada que não resiste a um olhar mais atento. Ao tratar do art. 327 do Código Penal, os autores costumam reproduzir a seguinte passagem de Hungria:

“É preciso, porém, não confundir função pública com múnus público. Assim, não são exercentes de função pública os tutores ou curadores dativos, os inventariantes judiciais, os síndicos falimentares.”(1)

A partir de tal excerto, afirma-se, às vezes com alguma alteração, que não se estende o teor do art. 327 àquelas pessoas ligadas ao múnus público. Tem-se como exemplo: Heleno Cláudio Fragoso(2), Magalhães Noronha(3), Luiz Regis Prado(4), Cezar Roberto Bitencourt(5), Júlio Fabbrini Mirabete(6) e Rui e Tatiana Stoco(7). Contudo, ao se examinar qual é o conceito de múnus público, conclui-se que se trata de encargo atribuível a particular para o especial exercício de função pública, extraindo-se como exemplo: o jurado e o mesário(8). Estes, aliás, são dois casos clássicos de funcionários públicos, para os efeitos do art. 327 do Código Penal. Os autores, de maneira sinuosa, indicam que nos casos de exercício de múnus público, em que a atuação colimar preponderantemente interesses individuais, particularizados, não incidirá o art. 327. Não se aclara a amplitude do conceito, repetindo-se — de forma sibilina — o tratamento da matéria.

É sobre caso semelhante a este, em que a doutrina não se houve com a devida atenção exegética, que recai o objeto deste Trabalho. Refere-se ao peculato-furto(9), no qual o funcionário público, valendo-se das facilidades que seu cargo proporciona, subtrai bem móvel, particular ou público, ou concorre para a subtração de outrem.

A vexata quaestio reside na segunda figura, em que o funcionário público concorre para a subtração efetuada por terceiro. Pelo que se depreende das lições doutrinárias, o tipo penal indica a ocorrência de ajuste entre o funcionário público que concorre e o terceiro que, efetivamente, subtrai o bem. Por todos, cite-se este trecho dos Comentários de Hungria:

“(...) na segunda, concorre, conscientemente para a subtração de outrem (ex.: o servente da delegacia fiscal, incumbido de fechar o edifício, deixa apenas cerrada uma das portas, por onde tiveram ingresso os ladrões, com os quais se achavam conluiados). Nesta segunda hipótese, o que se identifica é uma aplicação particular da regra sobre o concursus delinquentium, devendo ficar esclarecido que a qualidade de funcionário, embora de caráter pessoal, é elementar do crime e, portanto, comunicável.”(10)

Para todos os autores listados na nota anterior, na conduta em estudo, há acordo entre o funcionário que tem facilidade de acesso ao bem e o terceiro que não dispõe de tal peculiaridade. Cuida-se de hipótese em que se eleva à categoria de crime autônomo comportamento que seria, em princípio, apenas participação em crime de furto. No entanto, em razão dos deveres ínsitos à condição funcional, o legislador reconheceu maior reprovabilidade em seu agir e, deste modo, atribuiu-lhe pena maior do que aquela prevista no art. 155 do Código Penal.

Da apreciação da segunda parte do § 1º do art. 312 do Código Penal, duas questões avultam. Passa-se ao exame de cada uma, individualizadamente.

1. A imputação àquele que, efetivamente, subtrai

Caso a subtração do bem móvel situado na repartição pública seja perpetrada por particular ou funcionário público sem facilidade de acesso, ausente o concurso do sujeito ativo especial do § 1º, a imputação será de furto.

Por outra volta, com o auxílio do intraneus, de acordo com os autores citados, o agente da ação principal — subtrair — seria deslocado para o comportamento secundário do partícipe, funcionário público. É claro que esta análise é global, do fato como um todo. Isto porque, o funcionário público (com facilidade de acesso ao bem) é autor do crime do art. 312, § 1º, segunda parte.

Assim, acolhendo o posicionamento majoritário, de que se comunica a condição funcional da parte final do § 1º, chega-se à seguinte inusitada situação: o agente da subtração responderá como partícipe de sua própria ação; pois, o tipo diz “concorrer”, e, via de conseqüência, é promovida a atração para o comportamento do funcionário, que auxilia na subtração de outrem.

Mutatis mutandis, chega-se à mesma situação ilógica de se comunicar ao mandante a qualificadora “mediante paga” do homicídio qualificado. O motivo, aqui, é praticamente mercantil, ou seja, aquele que recebe o preço mata pelo recebimento do dinheiro. Em se transmitindo a circunstância subjetiva do agente-mercenário para o autor-mandante, culmina-se por apenar mais severamente por receber dinheiro de si mesmo(11).

Para solucionar o impasse do § 1º do art. 312, é imperioso ter presente a lição de Nilo Batista, exposta em sua excelente obra sobre concurso de agentes: “O extraneus não pode ser autor de um crime especial, e convém observar que a comunicabilidade opera num fluxo do autor para o partícipe, e não o contrário. (...) Nos crimes especiais, o autor idôneo é apenas aquele vinculado ao dever. Se o não qualificado conhece a idoneidade do autor, responderá: 1. nos crimes especiais puros, como partícipe, mesmo se interveio na execução do delito (não supre o requisito típico da autoria).”(12)

Assim, com amparo no escólio do nobre monografista do tema, pensa-se que, na hipótese da segunda parte do § 1º do art. 312 do Código Penal, o funcionário responde por peculato-furto, e, o agente da subtração por furto. Tal solução encontra colorido sistemático caso se tome como parâmetro a relação entre os delitos previstos nos arts. 318 e 334 do Código Penal. Na facilitação de contrabando ou descaminho, o funcionário público também concorre para a prática de outrem que, efetivamente, promove a realização das figuras do art. 334. Ninguém ousa, em tal contexto, afirmar que a condição de funcionário público se comunicará ao particular: cada qual responderá pela sua conduta. E tal se justifica graças às características do vetor em que opera o princípio da comunicabilidade: do autor para o partícipe.

Portanto, repise-se, na segunda figura do peculato-furto, havendo conluio entre o funcionário público e o agente da subtração, o primeiro responde por peculato e o segundo por furto.

2. A ausência de ajuste

A doutrina, ao cuidar da segunda parte do § 1º, sempre pressupõe concurso de agentes. Não se faz referência à ação do funcionário público que, dolosamente, contribui para que qualquer terceiro tenha maior facilidade na subtração. Tome-se o caso do funcionário que, revoltado com o órgão em que trabalha, deixa, deliberadamente, a porta destrancada, na esperança, firme, de que outrem venha a furtar os computadores que aparelham o recinto. Ao, simplesmente, passar-se ao largo da hipótese, despreza-se a significativa existência da previsão de tal comportamento, na modalidade culposa, disciplinada sob a rubrica de peculato culposo, no § 2º.

Aí, então, surgem três possibilidades para se encarar a omissão de cautela dolosa:

a) é atípica;

b) encontra-se, implicitamente, prevista no § 2º; ou,

c) está disciplinada na segunda figura do § 1º.

Admitindo-se, dada a maneira como tratada a matéria pela doutrina, que o § 1º pressupõe ajuste entre o funcionário e aquele que subtrai, e que, portanto, a omissão de cautela dolosa é atípica, chega-se a um grave quadro de provável impunidade. Refere-se à conseqüente imprestabilidade do § 2º. Caso se reconheça a atipicidade, bastaria se afirmar, nos casos de imputação de peculato culposo, que o agente atuou com dolo para que, então, safe-se da responsabilidade penal.

Além disso, há outro relevante problema na opção pela atipicidade. De acordo com o parágrafo único do art. 18 do Código Penal, a punição do crime culposo é extraordinária, dependendo sempre de referência expressa do legislador. O correto é criar-se a figura dolosa e, se for o caso, também se incrimina a forma culposa. É difícil conceber um delito que é punido apenas na modalidade culposa, a não ser que se remeta à ridícula figura do crime mula-sem-cabeça: art. 40-A da Lei n. 9.605/98, em que o caput foi vetado, mantendo-se, todavia, no § 3º, a surreal modalidade culposa de nihil.

Passa-se, então, para a segunda posição. Pode-se cogitar que a modalidade dolosa estaria prevista também no § 2º. Tal posição estaria, em certa medida, em sintonia com a concepção presente na Exposição de Motivos da Parte Especial, apresentada na apreciação do art. 130 do Código Penal (perigo de contágio venéreo). Ao se tratar de tal crime de perigo, viu-se na expressão que sabe dolo, e, na locução que deve saber culpa, admitindo-se, com reprovável técnica legislativa, num único tipo, a cominação de idêntico intervalo sancionatório para os modelos doloso e culposo de um mesmo agir.

Poderia, ainda, vir em abono a tal entendimento, o reconhecimento de relação de subsidiariedade entre dolo e culpa, calcada no exame do erro de tipo. Segundo o art. 20 do Código Penal, diante da falsa representação das elementares se exclui o dolo, mas, permite-se a punição a título de culpa. No entanto, por mais que se admita a relação de subsidiariedade, ela existiria no sentido dolo-culpa; ou seja, a culpa seria o acessório em relação ao dolo, desde que haja a previsão legal da categoria culposa. Assim, não aproveitaria o argumento. Por outro ângulo, poderia ainda ser lembrada a relação do dolo de perigo e o advento do resultado não querido pelo agente, o qual lhe viria a ser atribuído a título de culpa. No caso em questão, entretanto, o dolo do sujeito seria de dano e, não, de perigo, visto que ele deseja o resultado.

Por fim, deve-se abordar a inteligência de que a omissão de cautela dolosa estaria no âmbito do § 1º. Então, restaria ao magistrado proceder ao acertamento da reprimenda, pois a hipótese tradicionalmente tratada pela doutrina é mais grave, merecendo, na fixação da pena-base, mais intensa resposta punitiva, em razão da maior culpabilidade. Esta parece ser a explicação que implica menor esforço exegético, apesar de não ser a mais benéfica para o agente.

Das posições todas apresentadas, de fato, a mais garantista é a primeira. No entanto, ela acarreta a daninha conseqüência de aniquilar a figura culposa. A segunda padece de sensíveis entraves dogmáticos.

De qualquer forma, se, diante do ajuste, já se defende que o extraneus responde por furto, é evidente que, na ausência do conluio, por maior soma de motivos, também responderá ele pelo disposto no art. 155 do Código Penal, visto que o princípio da comunicabilidade requer o encontro de vontades.

Com tais considerações, busca-se contribuir para a análise, mais detida, dos crimes contra a Administração Pública.

Notas

(1) Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, vol. IX, p. 400.

(2) Lições de Direito Penal: Parte Especial. 6ª ed. rev. e atual. por Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, vol. II, p. 405.

(3) Direito Penal. 24ª ed. atual. por Adalberto José Camargo Aranha. São Paulo: Saraiva, vol. 4, p. 214.

(4) Curso de Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2006, p. 453.

(5) Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, vol. 5, p. 149.

(6) Código Penal Interpretado. 5ª ed. atual. por Renato N. Fabbrini. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 2.399.

(7) Código Penal e sua Interpretação. 8ª ed. rev., atual. e ampl., coord. Alberto Silva Franco e Rui Stoco. São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 1.526.

(8) É Interessante transcrever o seguinte ensinamento de Hely Lopes Meirelles: “Agentes honoríficos: são cidadãos convocados, designados ou nomeados para prestar, transitoriamente, determinados serviços ao Estado, em razão de sua condição cívica, de sua honorabilidade ou de sua notória capacidade profissional, mas sem qualquer vínculo empregatício ou estatutário e, normalmente, sem remuneração. Tais serviços constituem o chamado múnus público, ou serviços públicos relevantes, de que são exemplos a função de jurado, de mesário eleitoral, de comissário de menores, de presidente ou membro de comissão de estudo ou de julgamento e outros dessa natureza. Os agentes honoríficos não são servidores públicos, mas momentaneamente exercem uma função pública e, enquanto a desempenham, sujeitam-se à hierarquia e disciplina do órgão a que estão servindo, podendo perceber um pro labore e contar o período de trabalho como de serviço público. (...) Somente para fins penais é que esses agentes são equiparados a funcionários públicos quanto aos crimes relacionados com o exercício da função, nos expressos termos do art. 327 do CP.” Direito Administrativo Brasileiro. 28ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 79.

(9) “Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio: Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa. § 1º Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário. Peculato culposo § 2º Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano. (...)”

(10) Op. cit., pp. 348-349. Seguem no mesmo trilho: Heleno Cláudio, op. cit., p. 419; Magalhães Noronha, op. cit., p. 227. Luiz Regis Prado, op. cit., p. 320; Rui e Tatiana Stoco, pp. cit., p. 1.438. Celso Delmanto, et al., Código Penal Comentado. 7ª ed. rev., atual. e ampl., Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 779. Damásio Evangelista de Jesus, Código Penal Anotado. 9ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 883. Júlio Fabbrini Mirabete, op. cit., p. 2.327. Guilherme de Souza Nucci, Código Penal Comentado. 6ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Ed. RT, p. 1.009.

(11) Júlio Fabbrini Mirabete entende que se comunica tal qualificadora, pp. cit., p. 916. Neste sentido, no longínquo ano de 1993, o Supremo Tribunal Federal também entendeu de haver a comunicabilidade: HC 69.940/RJ – relator min. Sepúlveda Pertence – Primeira Turma – DJ 02-04-1993. No sentido contrário, entendendo que não se comunica a qualificadora: Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro. 6ª ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Ed. RT, 2007, vol. 2, p. 70. Em igual norte, posiciona-se o Superior Tribunal de Justiça: RHC 14.900/SC – rel. min. Jorge Scartezzini – Quinta Turma – DJ 09.08.2004, p. 277; REsp. 467.810/SP – rel. min. Felix Fischer – Quinta Turma – DJ 19.12.2003 p. 576.

(12) Concurso de Agentes. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2004, p. 170, o destaque não consta do original.

Mohamad Ale Hasan Mahmoud
Mestre e doutor em Direito Penal pela USP

MAHMOUD, Mohamad Ale Hasan. Peculato-furto e concurso de agentes. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 11-12, ago. 2008.

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