quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Artigo: O direito penal a serviço da "cultura da satisfação"

a) O modelo político-criminal brasileiro, caracterizado pelo agravamento das penas e supressão de garantias (v. Luiz Flávio Gomes, Crime Organizado, RT, SP, p. 26 e ss.), ganhará (na eventualidade de que os projetos discutidos neste Boletim-IBCCRIM Especial venham a ser tranformados em lei) novo perfil, visto que duas novas características deverão ser agregadas às anteriores: criação de novas figuras típicas e mais austeridade na execução das penas. Como bem está proclamando Damásio E. de Jesus , em artigo que também aparece nas páginas deste Boletim, estamos diante de um Direito Penal "simbólico, promocional, excessivamente intervencionista e preventivo".

b) Nunca foi tarefa fácil apontar os fatores ("causas") da criminalidade. Existe, no entanto, nos dias atuais, um certo consenso em torno de alguns fatores que geram violência e, em conseqüência, criminalidade: desigualdade social, baixa escolaridade, falta de policiamento, armas e drogas (v. Folha de S. Paulo de 3.9.95, p. 1-17 e ss.). Criminólogos e sociólogos de todos os continentes, apesar das diversidades de cada país, caminham para as mesmas fontes criminógenas. Só o fato de haver um mero consenso sobre tais fontes, já seria o bastante para os poderes públicos orientarem suas políticas criminais. Dito de outra maneira: o endurecimento das penas e da sua execução, a criação de novos tipos penais e o corte de garantias em nada suavizarão a desigualdade social, não aumentam o nível de escolaridade, não melhoram o policiamento, não reduzem as armas nem muito menos o consumo de drogas. Em suma: temos o diagnóstico da doença mas o remédio está completamente equivocado.

c) O círculo vicioso gerado pelo crime e sua persecução parece muito fácil de ser percebido: o modelo sócio-econômico implantado pelo Poder Público e pelas elites econômicas gera desequilíbrio social, falta de policiamento, baixo nível de escolaridade, cultura de armamento etc.; estes últimos geram a criminalidade; esta dá ensejo a pressões repressivas (demandas populares e da mídia) que, por sua vez, são a causa da resposta estatal (legislativo e executivo). O círculo é vicioso e também viciado: no princípio da casualidade há uma bipolaridade (Estado-Poder Econômico), mas a resposta final é exclusivamente estatal. Só se cobra do Poder Público uma resposta ao crime, quando o correto seria exigir uma radical mudança dele e do Poder Econômico.

d) A reação estatal, engendrada em clima tão primitivo e emocional quanto o que norteia a demanda repressiva, só pode evidentemente ser simbólica (ilusória, enganatória), faz de conta que está oferecendo "solução" para o problema, quando, na verdade, apenas o mascara. Uma coisa é certa, entretanto: o Poder Público intervencionista tão odiado pelo Poder Econômico tampouco mostra eficiência na hora de apurar o crime: de cada mil infrações, somente uma acaba sendo punida executivamente (v. Pastore, Rocca e Pezzin , Crime e Violência Urbana, Seplan-Fipe, SP, 1986). A insegurança social acaba afetando a todos. Desgraçadamente, de modo desigual também. Os mais ricos, embora estejam também sujeitos ao crime, contam com maior nível de segurança pessoal.

e) Na reforma penal projetada, a "santificação" e "sacralização" do "veículo automotor" (que passa a ser objeto de furto qualificado, roubo qualificado, receptação, agravada, falsidade específica) bem revela o nível de simbologia da legislação penal brasileira. E paradoxalmente isso ocorre em um momento em que os furtos e roubos de veículos diminuíram 21,2% (v. Folha de S. Paulo de 3.9.95, p. 1-17). Sempre que nosso país experimenta uma certa normalização econômica, os crimes patrimoniais diminuem. Cabe então perguntar: o que é mais eficaz na prevenção do crime, a justa distribuição da riqueza ou o endurecimento nominal da lei penal?

f) A novidade nessa equivocada tutela penal "especial" ao veículo, que na visão da legislação projetada estaria para um segmento da população brasileira como a vaca está para a Índia, consiste em que também o Direito Penal deve estar a serviço da "cultura da satisfação", que se caracteriza, conforme John K. Galbraith, pelo seguinte: "é mais que evidente que os afortunados e os favorecidos não contemplem seu próprio bem-estar a longo prazo nem sejam sensíveis a ele. Reacionam, e vigorosamente, para a satisfação e a comodidade imediatas" (La Cultura de la Satisfacción, Ariel, Barcelona, 1992, p. 17). Essa reação vigorosa na Lei dos Crimes Hediondos teve como objeto o dinheiro envolvido em seqüestros. Agora é o veículo. Amanhã certamente será a bicicleta e um dia chegaremos aos "patins", tudo dependendo do legislador plantonista. Se agravamento de pena fosse solução, onde existe a pena de morte o crime já teria sido banido. O que mais impressiona nas reformas penais brasileiras desta década não é tanto a "sacralização" de alguns objetos, senão a "coisificação" do ser humano.

Luiz Flávio Gomes

GOMES, Luiz Flávio. O direito penal a serviço da cultura da satisfaçäo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.33, p. 11, set. 1995.

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