quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Artigo: O crime e o castigo

"Num Estado, não são os castigos mais ou menos cruéis que fazem com que sejam obedecidas as leis. Nos países onde são moderadas as penas, temem-nas tais como naqueles onde são tremendas e tirânicas" – Montesquieu, Cartas Persas, 132; trad. Mário Barreto, Garnier, ano 1923.

Pode parecer estultícia descutir projeto de lei, se quem o elaborou e quem irá apreciá-lo no Parlamento são pessoas que jamais leriam estas notas. Ocorre que se pretende alcançar outra categoria de agentes: operadores do Direito, instituições que lidam com o Direito. Mas se é válido o ceticismo de Brás Cubas, das Memórias Póstumas, os leitores (ou meus leitores) andarão aí pela casa dos dois ou três.

Pode ser que seja por coerência com sua metodologia de Governo – a política econômico-financeira tem, cada dia, novo aspecto (de manhã, a estimular a importação; a partir da meia-noite, a freá-la) – o Executivo passou a pontuar (relevem-me a neologia de acepção) o nosso já desarranjado sistema de leis. E se isso é danoso no sistema como um todo, não é difícil imaginar o mal que daí resulta na área do direito e processo penal.

O que se entendia por legislação, até certo tempo, eram códigos redigidos em substantivos. O código eram normas que disciplinavam a vida do patrimônio (direito civil, comercial etc.), que disciplinavam a vida da vida e a segurança das pessoas (direito penal, processual penal etc.). Mas fosse na área dos bens materiais, fosse na área dos bens morais – tudo tinha de estar conforme a filosofia que inspirava a parte geral dos códigos. Em decorrência disso, valia o conselho que dávamos aos jovens: estudem a parte geral (ato jurídico, ação, jurisdição, crime, pena) e o mais, como na Bíblia, seria dado por acréscimo.

E hoje?

A partir da averiguação, válida, de que o tempo (em sentido amplo) andou mais que os códigos – o Governo virou remendão. Em vez de montar um código penal, um código de processo penal que se compusessem com os reclamos dos nossos dias – abriu-se o Aurélio à cata de adjetivos que ornassem o novel catálogo de leis, ou melhor, de penas: crimes hediondos, crime organizado, crimes de especial gravidade.

Pode ser que inconscientemente, mas fez-se uma opção filosófica: pelo que se intui dessas leis e dos projetos de leis que o Governo vem de conceder – o combate ao crime há de ser feito por meio da exasperação da pena, do máximo de castigo. Fora de moda invocar, assim – até como utopia – a possibilidade de recuperação do hoem de delinqüiu. Beccaria, iluminismo, direitos humanos – coisa de gente desocupada...

No crime, ver o pecado; na pena, purgação.

Veja-se o risco: uma pletora de leis que estão a reescrever a parte especial dos códigos penal e de processo penal – a mídia a martelar, diário, por maior rigor nas penas – vem, logo aí, a prisão perpétua e, de cambulhada, a pena de morte.

O IBCCRIM é uma das instituições que podem tomar a iniciativa de dar o toque de reunir. IBCCRIM, OAB, Associação Juízes para a Democracia, Ministério Público Democrático, a Universidade – isso de um lado. E de outro? Do setor em que se quer influir?

A história, de todo em todo, favorece: um Presidente, cujo passado é um dos mais eloqüentes testemunhos de compromisso com a Democracia; o Ministro da Justiça tem um nome que zelar, pelo respeito que suas atitudes ganharam na área dos que combateram a ditadura; na chefia de gabinete dos Ministros, um político com uma folha de serviço que encoraja os que ora se batem contra o desaviso de leis e projetos de leis que afrontam os postulados do Estado Democrático de Direito.

Ranulfo de Melo Freire

FREIRE, Ranulfo de Melo. O crime e o castigo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.33, p. 09, set. 1995.

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