quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Artigo: O bafômetro e a "lei seca"

Os problemas decorrentes do consumo de álcool entre condutores de veículos têm sido amplamente estudados e considerados um importante problema de saúde pública em todo o mundo. Tais problemas geram elevados custos sociais e conseqüências para os acidentados, resultando em danos socioeconômicos pela soma dos prejuízos materiais, médicos e os referentes à perda de produtividade. Com base em modelos econômicos vigentes, o custo total dos acidentes no tráfego é de 1,0% do total do Produto Interno Bruto (PIB) em países de baixa renda, 1,5% em países com renda média e 2,0% naqueles de alta renda. O espaço urbano e particularmente o trânsito são cenários de muitas conseqüências do uso indevido do álcool sendo que aproximadamente um quarto a metade dos acidentes automobilísticos com vítimas fatais estão associados ao uso do álcool por algum dos responsáveis pela ocorrência. O setor público provém de medidas de controle e atenuação desses efeitos e a OMS sugere quatro ações para controlar os problemas relacionados ao consumo de álcool e direção: redução do limite de concentração sanguínea do álcool permitida para dirigir; suspensão administrativa da licença de motoristas que dirigem intoxicados; fiscalização com bafômetros e uma política de “tolerância zero” para motoristas novatos.

Existem amplas evidências científicas na literatura internacional que estabelecem uma relação inversamente proporcional entre a utilização de etilômetros e acidentes de trânsito relacionados ao álcool: quando a fiscalização com testes respiratórios intensifica-se, o número de acidentes com motoristas alcoolizados diminuiu proporcionalmente.

Esta abordagem mostrou-se altamente efetiva, e nas cidades onde testes com bafômetros são realizados semanalmente há uma redução de cerca de 20% dos acidentes fatais relacionados ao álcool. Pudemos experimentar alguns destes efeitos em poucas semanas da “lei seca”, com diminuição do número de acidentes, atendimentos a urgências e emergências em várias cidades do país.

Pesquisa nacional da Uniad/Unifesp realizada em 2006-2007, com 6.356 motoristas em várias capitais, apontou que 1/3 dos condutores avaliados apresentava positividade nos bafômetros. Estes valores são sete vezes maiores que os obtidos internacionalmente. Este comportamento de beber e dirigir só se sustenta quando em consonância com as normas culturais vigentes em uma comunidade. Poucas restrições às propagandas nos meios de comunicação a tornam eficiente em seduzir o público, principalmente o jovem, para o consumo de bebidas alcoólicas, citando inocuamente reiteradas vezes o bordão “se beber não dirija”. Ou seja, os valores que imperam são: o lobby das indústrias de bebidas alcoólicas, o descontrole social em relação ao consumo elevado do álcool a baixos preços, com sua ampla disponibilidade nos mais variados ambientes, banalizando o seu consumo e a tolerância em relação à transgressão legal. De fato, a magnitude do resultado obtido também seria improvável na presença de uma eficiente fiscalização e punição por parte dos agentes de trânsito.

Neste estudo também constatamos que em 56% dos casos não havia correspondência correta entre a avaliação prévia de entrevistadores treinados para analisar o estado de embriaguez do condutor e os resultados posteriormente obtidos nos testes respiratórios. Isto ocorreu porque boa parte dos motoristas com álcool positivo no bafômetro não estava obviamente intoxicada, o que vai de acordo com a literatura internacional e certamente faz com que o agente de trânsito tenha grandes dificuldades de identificar um motorista alcoolizado sem a utilização destes aparelhos. O maior obstáculo para a implementação de testes com bafômetros no Brasil, sempre foi a possibilidade de recusa por parte do condutor suspeito, alegando que a Constituição Brasileira lhe dá este direito, face ao princípio constitucional da não-obrigatoriedade de produzir prova contra si mesmo. Salientamos que tal recusa é permitida em vários países do mundo, porém o motorista sofrerá várias penalidades administrativas, tais como a aplicação de multas, retenção da carteira de motorista e do veículo.

No Brasil, o álcool responde por cerca da metade dos acidentes graves de trânsito e os adultos menores de 30 anos são suas maiores vítimas. O ato de dirigir após o consumo de bebidas é percebido como uma prática comum, que precisa ser controlada. Mortes e inaptidões causadas por uma combinação de consumo de álcool e direção podem ser prevenidas. Para tal, políticas públicas relevantes e sustentadas revelam-se imprescindíveis.

Tais políticas e leis, ao promoverem modificações estruturais no ambiente onde usualmente se bebe, provocam mudanças no comportamento relacionado ao consumo de álcool. As leis federais e estaduais estabelecem as bases para políticas locais. Estas têm como desafio a implantação e o cumprimento dessas leis existentes e a adaptação às características locais (recursos, vigilância e particularidades).

Nacionalmente, a “lei seca” é um tipo de política de prevenção coletiva que muda o comportamento populacional, e é mais eficaz que somente campanhas educativas isoladas (do tipo “se beber não dirija” ou “piloto da vez”). Quanto à rigidez da lei temos a acrescentar que não há limites seguros para consumo de bebidas alcoólicas em motoristas. Mesmo em baixas doses o álcool provoca prejuízos visuais, nos reflexos e visão periférica, comprometimento da noção de distância, velocidade, atenção, coordenação e tempo de reação, além da alteração na capacidade de controle dos impulsos e aumento da impetuosidade. O risco de acidentes aumenta uma vez e meia após consumir uma dose e dobra após duas. Um único episódio de consumo pode acarretar efeitos, mesmo que o indivíduo não beba com freqüência. Isto é particularmente importante na população que bebe preferencialmente nos finais de semana, como os adolescentes e adultos jovens, que costumam ser as maiores vítimas de acidentes de trânsito.

A “lei seca” não está proibindo as pessoas beberem e não é rígida demais ao estipular que o consumo de uma quantidade de álcool equivalente a dois chopes seja suficiente para a prisão do condutor. Basta, na maioria das vezes, alterar alguns hábitos e aguardar mais antes de conduzir um veículo. Este, talvez, seja um dos principais pontos a serem enfatizados. Apesar de existirem pessoas mais tolerantes ao álcool, infelizmente, não dá para fazer uma lei baseada no metabolismo individual, próprio de cada pessoa. O importante a ser preservado seriam o interesse e a segurança coletiva e a mudança do comportamento em relação ao beber e dirigir.

Referências Bibliográficas

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Sérgio Duailibi
Médico do Trabalho, especialista em Dependência Química e doutor em Ciências da Saúde pelo Departamento de Psiquiatria, Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, Brasil; pesquisador em Políticas Públicas do Álcool e Prevenção Comunitária na Unidade de Pesquisa em Álcool e outras Drogas (Uniad) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, Brasil

Ronaldo Laranjeira
Médico psiquiatra, professor doutor, titular do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), São Paulo, Brasil; PHD em Dependência Química pela Universidade de Londres. Coordenador Geral da Unidade de Pesquisa em Álcool e outras Drogas (Uniad)

DUAILIBI, Sérgio; LARANJEIRA, Ronaldo. O bafômetro e a "lei seca". Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 189, p. 17, ago. 2008.

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