sábado, 6 de setembro de 2008

Artigo: Incivilidade

As faixas de pedestre apenas trazem um zebrado ao asfalto. Nada mais. Tente atravessar na faixa numa esquina sem semáforo. E se houver semáforo, não arrisque atravessar do lado oposto ao que estão parados os carros por força do farol vermelho. Os automóveis que vêm da transversal entram à direita sem pestanejar e, se você pensa que vale algo estar na faixa, prepare-se para correr ou para dar um pulo para trás.

A quantificação temporal do segundo pode ser medida pelo instante que medeia a abertura do sinal e o som estridente da buzina do veículo que está na retaguarda. Trata-se mesmo de uma guerra. Estão todos em desabalada correria para chegar ao compromisso. Corre-se, mas o atraso não incomoda: ninguém mais se importa em descumprir horários, mesmo porque a desculpa óbvia brota espontânea: "Esse trânsito! Impossível viver em São Paulo."

Não há mais horário do rush. Carros em profusão rodam a qualquer hora. Programe-se para sair sempre com muita antecedência. Por vezes, inesperadamente, chegará bem antes da hora. São Paulo surpreende, quando não se é surpreendido por um assaltante que aponta o revólver no semáforo para exigir a entrega do relógio ou do celular. Nem adianta ficar tenso a olhar pelo retrovisor para ver se alguém se aproxima. O ladrão sempre chega do lado inesperado. O motorista sente-se vitorioso quando consegue se atrasar apenas cinco minutos, tendo passado incólume pelos assaltantes do trajeto.

Mas não é possível relaxar e gozar, como talvez uma candidata à Prefeitura pudesse sugerir. As motos não permitem qualquer devaneio. Os motoqueiros, talvez pressionados pela exigência de cumprir tarefas de entrega, metem-se arriscadamente entre os automóveis. Fazem ziguezagues infernais, os joelhos tangenciam os pára-choques, a buzina estridente soa como um imperioso "abre-te, Sésamo". Coitado de quem não se recolhe para o meio fio, aumentando o espaço entre os carros para a passagem triunfal do motoqueiro: o retrovisor vai para o espaço ou, por se ter desatendido ao mandamento da buzina, um soco afunda a lataria.

A tensão é contínua nas avenidas, como Radial Leste, 23 de Maio ou as Marginais. Não tente mudar de faixa, um motoqueiro pode surgir do nada, pelo meio, e a desgraça está consumada. Muitas vezes o trajeto dessas avenidas é entristecido por um corpo de motoqueiro caído. Então, vários motoqueiros estacionam. O motorista do automóvel com o qual houve o choque pode sofrer represálias, seja ele o culpado, por ter agido com imprudência, ou apenas vítima da imprudência do motoqueiro. Há um espírito de corpo e os motoqueiros nessa hora agem como mosqueteiros: todos por um.

Mas o Código de Trânsito Brasileiro não impõe o respeito ao pedestre na faixa? Ora, o Código! No Brasil é preciso portaria ou resolução dizer que se deve respeitar uma lei ou a própria Constituição. Do contrário, não se cumpre. O nepotismo no Judiciário só passou a valer depois de resolução do Conselho Nacional de Justiça determinar o que já afirmava a Constituição. Falta uma portaria para dar eficácia ao Código de Trânsito.

Na grande metrópole, a violência está nos atos, nos rostos, na urgência para tudo, sendo ainda mais gritante por conta do barulho das sirenes de ambulâncias e viaturas policiais.

Em São Paulo a violência está emprenhada no cotidiano, haja vista a falta de civilidade. Perceba que não se dá bom dia, boa tarde, boa noite. O passageiro do elevador entra de cara amarrada, consumido por suas tensas preocupações, e nem sequer percebe a sua presença lá no fundo. Pode-se até assustá-lo diante da gentileza de um bom dia, que soa como uma invasão de privacidade. A pessoa do outro termina por ser, quase sempre, um estorvo. Não há tempo a perder com um sorriso amável dirigido ao vizinho ou ao empregado do prédio ao lado. Cada um por si e ninguém por todos.

As pessoas, depois da chegada do celular ou dos joguinhos eletrônicos, nunca estão com quem está ao seu lado, pois não conversam com os presentes, só com os distantes. Veja quantos namorados passam o jantar a falar cada qual ao celular. Saem amorosamente juntos para ter "companhia" ao falar no celular. Só findam o diálogo com o ausente, por instantes, quando chega o prato escolhido, o que não impede, após algumas garfadas em silêncio, vir o celular tocar novamente para a atenção dada ao filé com mostarda ser dividida com o terceiro do outro lado do telefone.

Pior são as crianças com os joguinhos eletrônicos. Há poucos dias, num restaurante, havia jantar de aniversário de um senhor, já avô. Em mesa anexa à principal, três netos não trocaram palavra. Cada qual estava absolutamente entretido com seu joguinho. Nem ao menos olhavam um para o outro. Já na sobremesa, pois haviam engolido a comida na ocupação contínua de apertar os botões, um dos aparelhos pifou. Aí, sim, eles se reuniram para prontamente cuidar da saúde da caixinha eletrônica. E o velho avô já apagara as velinhas, sem contar com o sopro caloroso dos netos.

Outra cena da metrópole são as plastificadas festas de aniversário infantil em bufês. O presente não é entregue à criança: a recepcionista registra o nome do presenteador. O aniversariante não recebe o abraço afetuoso de parabéns. Está envolvido em algum brinquedo do miniparque de atrações dos salões de festa infantil, na qual os adultos bebem, alguns pais separados buscam uma paquera possível e outros olham sofregamente para o relógio.

Temo pelo futuro desta novíssima geração. Por ora, parece que são robôs gestados durante nove meses, mas cujo teste de qualidade como humanos ainda está por se efetuar, cabendo-lhes vencer o clima espiritual de nosso tempo, em especial de nossa cidade, que de modo algum ajuda o vicejar de sentimentos de solidariedade e de respeito a si próprio e ao próximo.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor-titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

Estadão.

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