quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Artigo: Foro especial para ex-autoridades, de novo?

O foro por prerrogativa de função, também intitulado foro especial, é objeto de grande controvérsia doutrinária. Para alguns, representa uma garantia necessária à governabilidade, bem como ao exercício de determinados cargos, enquanto outros vêem nele cristalina e odiosa ofensa ao princípio da isonomia.

O instituto encontra fundamento no fato de que certas pessoas exercem cargos de especial relevância no cenário político-jurídico do Estado. Em atenção a tais cargos, não são processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos superiores, de instância mais elevada.[1]

O foro especial pode ser analisado tanto à luz de seu alcance material quanto de seu alcance temporal. Enquanto aquele diz respeito aos tipos de ações judiciais em que a autoridade pública será julgada perante o foro definido no texto constitucional, este se refere à delimitação do prazo durante o qual a autoridade pública fará jus ao foro especial, ou seja, se só durante o exercício da função pública, ou se mesmo depois de expirado o exercício da função pública. [2]

Em relação ao alcance material, o foro especial somente existe para ações de natureza penal, não abrangendo, por exemplo, ações civis públicas, ações populares e ações de improbidade administrativa.

Quanto ao alcance no âmbito temporal, previa a súmula 394 do STF que “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Ocorre que na sessão plenária de 25/08/1999, o STF cancelou tal súmula, passando a competência a se definir pela regra da atualidade do mandato. Ou seja, somente existiria foro especial enquanto o agente estivesse no exercício da função.

O tema causou grande repercussão com o advento da Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que acrescentou dois parágrafos ao art. 84 do CPP. O parágrafo 1º estabelecia a prorrogação do foro especial após a cessação do exercício da função pública, e o § 2º previa foro especial para ações de improbidade administrativa. A doutrina quase unânime apontou a inconstitucionalidade dos dispositivos, até que o STF declarou procedentes as ações diretas de inconstitucionalidade ajuizadas pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP e pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB[3]. Desta forma, a definição da competência passou novamente a reger-se pela regra da atualidade do mandato.

Por ora, o assunto encontra-se relativamente pacificado. Contudo, o debate virá à tona novamente, caso seja aprovada a Proposta de Emenda à Constituição nº 358, de 2005, conhecida como segunda parte da reforma do judiciário. Isto porque o art. 2º da proposta visa restituir o foro especial para ex-autoridades e para ações de improbidade.

Em audiência pública realizada em 2006, na Câmara dos Deputados, o atual presidente do STF, Gilmar Mendes, e a ministra Ellen Gracie, defenderam a ampliação do foro privilegiado para ações de improbidade administrativa e a sua extensão a ex-autoridades. Mendes afirmou que está cada vez mais convicto de que a prerrogativa de foro é uma questão de governabilidade, e disse que considera incoerente que o Presidente da República responda criminalmente perante o STF, mas possa ser afastado do cargo por liminar de juiz da primeira instância, em ação de improbidade movida por um procurador da República[4].

Em nossa opinião, ainda que fruto de emenda, tais modificações serão inconstitucionais, por ofensa ao princípio da isonomia[5]. Se todos são iguais perante a lei, é preciso um motivo relevante para afastar o criminoso do seu juízo natural, entendido este como o competente para julgar todos os casos semelhantes ao que foi praticado[6].

A nova situação criaria aos ex-exercentes de funções públicas tratamento diferenciado em relação aos demais cidadãos, tratando desigualmente pessoas que se encontram em situação igual. Se a justificativa para o foro especial está no exercício de determinadas funções públicas, e sua finalidade é o interesse público, observar-se-ia o desvirtuamento da medida. Nesta esteira, ensina Luiz Flávio Gomes que o foro especial só tem sentido enquanto o autor do crime está no exercício da função pública. Cessado tal exercício (não importa o motivo: fim do mandato, perda do cargo, exoneração, renúncia etc.), perde todo sentido o foro funcional, que se transformaria em um odioso privilégio pessoal, que não condiz com a vida republicana ou com o Estado Democrático de Direito[7].

As críticas feitas por Hugo Nigro Mazzili à Lei 10.628/02 são perfeitamente cabíveis à hipótese ora discutida. Ressaltou o autor, à época, que referida lei representava “apenas mais uma atitude própria da cultura de privilégios que infelizmente tem sido freqüente em nosso País, pois os administradores e parlamentares não se conformam em ser processados, mesmo na área cível e ainda que depois de terem deixado os cargos, perante os mesmos juízes que julgam os demais brasileiros”[8].

Em coerente análise, Guilherme de Souza Nucci vai além, criticando a existência do instituto. Para ele, se todos se prestam igualmente à justiça cível, seria natural que também fosse assim em relação à justiça criminal. E o argumento de que um juiz de 1º de grau não poderia julgar um Ministro de Estado que cometa um crime, pois seria “subversão de hierarquia”, não se justifica, uma vez que os magistrados são independentes no exercício da função jurisdicional. Ademais, sustenta, o juiz de 2º grau está tão exposto quanto o de 1º grau em julgamentos dominados pela política ou pela mídia. E conclui: “Garantir que haja o foro especial é conduzir justamente o julgamento para o contexto do cargo e não ao autor da infração penal. [...] Entretanto, por ora, a competência por prerrogativa de função está constitucionalmente prevista, razão pela qual deve ser respeitada. No futuro, havendo amadurecimento suficiente, tal situação merecerá ser alterada[9].

Diante do exposto, entendemos ser inaceitável a aplicação do foro especial à ex-autoridades e ações de improbidade, pois inexiste justificativa plausível, além de ferir de modo gritante o princípio da igualdade, consagrado na Carta Magna de 1988. A população brasileira está descrente das instituições e dos agentes políticos exatamente pelo fato de que estes, muitas vezes, preocupam-se apenas com seus interesses particulares. É dever dos operadores do direito e de toda a sociedade a fiscalização dos atos legislativos, bem como a cobrança para que os princípios constitucionais sejam aplicados fielmente, sem qualquer violação.

[1] TOURINHO FILHO. Fernando da Costa. Processo Penal. v. 2. São Paulo : Editora Saraiva, 2005. p. 129.

[2] Aulas de Direito Constitucional. 8 ed. ver. Atual. Rio de Janeiro : Editora Impetus, 2006. p. 382.

[3] v. Informativo 362 do STF.

[4] FREITAS, Silvana de. STF defende foro privilegiado para ações de improbidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 01 jun. 2006. Brasil, p. 14.

[5] Neste sentido: LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 9. ed. São Paulo : Editora Método, 2006. p. 252.

[6] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 256.

[7] Reformas penais : foro por prerrogativa de função. Disponível em:
[8] O foro por prerrogativa de função e a lei n. 10.628/02. Revista Jurídica. Porto Alegre, v. 51, n. 304, p. 54-58, fev. 2003.

[9] op. cit. p. 256-257.


Jamil Chaim Alves e Grasielle Borges Vieira de Carvalho, Mestrandos em direito penal pela PUC/SP, Especialistas em direito penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.

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