quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Artigo: Do dolo de perigo à culpa consciente

Uma das novidades trazidas pela lei nº 9.099/95 é a necessidade de representação do ofendido para que se instaure a ação penal nos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas (art. 88).

A providência ora reclamada de longa data, e já havia sido posta no CP de 1969, que acabou não entrando em vigor. Trata-se, como nota Luiz Flávio Gomes, de medida de despenalização que, sem descriminar, dificulta a aplicacão de sanção penal (Suspensão Condicional do Processo, RT, 1995, p. 205).

Surge, porém, uma preocupação: a de não se desprezar os casos em que a lesão culposa, sobretudo no trânsito, aparece como episódio final de uma atividade que já vinha sendo criminosa.

Isto pode ocorrer quando o motorista, antes do acidente, considerando a franca proximidade do evento danoso, pelo seu agir perigoso, atua com consciência de que aquele poderia sobrevir. Tal caso é bem diverso daquele em que a culpa constitui isolada e momentânea violação do dever objetivo de cuidado.

Não se fala em dolo eventual relacionado ao dano, como com certo exagero tenta-se às vezes enquadrar as disputas de velocidade em áreas urbanas, os famigerados "rachas". Para presença de dolo eventual não basta consciente e concreta possibilidade de produção de resultado; deve haver relação de vontade ligando o resultado ao agente (v. Wessels, Direito Penal, Parte Geral, p. 53, apud Silva Franco e outros, CP e sua interpretação Jurisprudencial, nota 2.02.b2 ao artigo 18). Quem pratica "racha", provoca acidente e fere alguém, realiza formalmente, entre nós: a) o tipo culposo do artigo 129, § 6º do CP; b) o tipo doloso de perigo do artigo 132 do CP.

A conduta final culposa pode absorver a reprovabilidade pelo dolo anterior, pela subsidiariedade do artigo 132 do CP (cf. JUTACRIM 32/197). Há quem diga que no caso de lesão culposa, mais levemente apenada que o crime de perigo para a vida ou saúde de outrem, prevalece este (cf. Celso Delmanto, CP Comentado, nota ao artigo 132, RT 535/324, JUTACRIM 75/378).

Em virtude da Lei nº 9.099/95 o delito de lesão corporal culposa – ainda que se trate de culpa consciente e que as lesões sejam graves – já não será mais punível se a vítima não quiser. Assim, olhos acostumados a ver a questão sob a angulação única do dano, informado pela culpa, não poderão deixar de analisar certos fatos que ocorrem no trânsito sob aquele outro aspecto, do dolo de perigo.

Afinal, embora crime do artigo 132 do CP tenha como objeto jurídico a vida e a saúde da pessoa, não se pode esquecer que ele se relaciona, também, à incolumidade pública. O objeto material da ação é a pessoa que corre o risco; o objeto jurídico é o interesse do Estado em impedir a criação de uma situação de perigo (v. Álvaro Mairink da Costa, Direito Penal, Parte Especial I, p. 284). A preocupaçnao mais geral do legislador com a identidade de qualquer pessoa, em termos de segurança pública, pode ser notada na própria exposição de motivos do CP (item 46), embora não tenha disciplinado adequadamente a questão do perigo no trânsito.

Na verdade, deveria haver um crime específico de perigo relacionado ao trânsito de veículos, elevando-se, a contravenção de direção perigosa à condição de crime, com apenação mais severa.

Entusiasta da prevenção, Manoel Pedro Pimentel preconizava devesse o Direito Penal alcançar mais as condutas por si reveladoras de perigo, porque "determinadas formas de comportamento indicam claramente a proximidade de um crime" (Crimes de Mera Conduta, 1975, RT, p. 132). Com a frase – inspirada na construção doutrinária do crime progressivo – o saudoso mestre deixou claro que se há de cortar rente o crime minus da base para se cercear o crime majus, que poderá ser até a morte de alguém.

No Brasil, o uso indiscriminado do automóvel tem trazido à vivência social verdadeiro transtorno, sobretudo nos grandes centros urbanos; tem matado e ferido mais pessoas que a lesão ou homicídios dolosos, sem que o Estado tenha dado respostas satisfatórias para esta solução (cf. Régis Bonvicino, Os Acidentes de Automóvel, em Juízes para a Democracia, nº 3, outubro / 94).

A legislação penal tem de disciplinar mais adequadamente a questão, punindo mais eficazmente – mas com penas alternativas à de prisão – aquele que causa perigo concreto no trânsito, afastando-se do risco permitido no uso do automóvel, este socialmente positivo – enquanto meio de locomoção e não como potencial arma –, que nosso tempo de velocidade tem de admitir.

Dyrceu A. D. Cintra Jr.
Juiz Criminal em São Paulo

CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. Do dolo de perigo à culpa consciente. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.35, p. 04, nov. 1995.

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