quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Artigo: Divagações sobre a crise do direito penal

Há muito tempo é sabido que o direito penal em si não é a resposta adequada à solução das tensões sociais mais graves, não obstante a sua utilização indiscriminada por Estados cujos governantes, pelos motivos que sejam, acreditam piamente no rigor da lei como panacéia ao contestável e alardeado incremento da violência nos grandes centros. A crise por que passa a nossa ciência pode ser abordada sob dois ângulos distintos. Sob um aspecto, os responsáveis pela aplicação da lei penal estão mergulhados em uma pletora de leis, vetustas e distantes da realidade, repleta de contrasensos, e passam a maior parte do tempo preocupados em solucionar questíunculas de cunho estritamente dogmático, desdenhando-se de interpretar a lei de acordo com uma política criminal em equilíbrio com as exigências da ordem social. Em segundo plano, a estrutura física da Justiça Penal está muito aquém do esperado e do propalado pelas leis penais. Abordemos com mais profundidade cada um destes aspectos.

As leis penais são elaboradas em nosso País com a ilusão de que significarão um arrefecimento dos comportamentos que ofendem o bem jurídico que procuram proteger. Quanto mais dura a lei, mais temor terão os súditos de contrariá-las. Ledo engano! Enquanto houver sociedade haverá condutas contrárias à sua estabilidade e desenvolvimento, mas o controle destas condutas está longe de ser obtido pelo terror penal. Por outro lado, preocupados com questões dogmáticas tão distantes de uma desejada política criminal, nós, funcionários da Justiça Penal, tornamo-nos burocráticos da lei e espectadores do cada vez mais combalido valor que lhe sustenta. A lei penal mal elaborada é sempre mal interpretada e vez ou outra invade seara que não lhe pertence, imiscuido-se em assuntos que encontrariam melhor solução em outros ramos do Direito. A falta de um pleno de política criminal claro e objetivo em nosso País, elaborado a partir das necessidades da ordem social conduz o funcionário da Justiça Penal a uma terra baldia: como interpretar corretamente a lei penal se existem proposições de endurecimento da norma penal, contrárias muitas vezes à lei maior e ao primeiro direito natural?

O multiculturalismo faz parte de nossa vida. Estamos a todo momento reavaliando posturas pré-concebidas com relação a determinados tipos de comportamento que antes tínhamos como hereges. Disso se olvida o legislador. Contudo, a lei penal, como última "ratio", não se pode furtar a essa realidade: apenas aqueles comportamentos que tão gravemente ofendem a ordem social que se desenvolve devem por ela ser abordados. Observemos o papel da mulher e veremos o ostracismo dos crimes contra os costumes. Notemos o papel da família e verifiquemos a perda de eficácia de determinados tipos penais. Reavaliemos o comportamento das grandes empresas, no que tange ao meio ambiente e ao âmbito das relações de consumo, por exemplo, e sentiremos a falta da lei penal. Urge, pois, que se dê uma nova dimensão ao Direito Penal.

No que tange ao segundo prisma sob o qual a crise do Direito Penal deve ser vista, cumpre-me dizer que nossa Justiça Penal é fisicamente inapta para o papel que lhe corresponde, seja á luz da lei positiva ou das diretrizes que hoje exige a nossa civilização. Prevalece o direcionamento dos órgãos de controle social àquelas minorias menos favorecidas no âmbito social. Constrangidos, remetemos (ou melhor, dizemos que a lei remete), inúmeros "infratores" da lei ao inferno dantesco que são os nossos presídios e as nossas cadeias. Queremos crer que ali, como por um passe de mágica, expiarão a sua culpa e se reabilitarão para a vida social, tornando-se, como nós, honrados cidadãos cumpridores de seus deveres sociais. Hipócritas é o que somos. Não conseguimos e nunca conseguiremos nos colocar no lugar dos "infratores", como todas as vicissitudes de sua vida, para avaliar se devia ou não agir conforme o direito. Pressupomos o livre arbítrio. Vivemos como meros espectadores de sua ingrata vida, intangíveis, todavia, aos sofrimentos e miséria que padecem.

O Direito Penal é simbólico. Faz bem à sociedade e às pessoas em geral saber que "eu não sou igual a ele", ou seja, alimenta o nosso ego maniqueísta que nos acompanha desde imemoráveis tempos. Sentimo-nos diferentes quando observamos o réu, o infrator, algemado, como não deveria sê-lo um animal, circulando nos corredores dos palácios de Justiça, com a face voltada para a parede reprimido, humilhado. Afinal, ali o bem vence o mal. O poder quase divino que lhe arrebata a alma, condenando-o ao inferno, antecipa o juízo final.

A Justiça Penal de hoje lembra-nos passagens da Santa Inquisição. Fechamos os olhos para o estado das prisões em nosso País e nos esquecemos que a pena deveria ter um sentido reabilitador. Na prática, nos alçamos na condição de puros, com o poder para castigar o homem, impingindo-lhe uma marca indelével que deverá carregar consigo, ostentando a sua baixa condição social.

São vagarosas as mudanças de mentalidade. Por um lado, influenciado pela mídia sensacionalista, crê ainda o Estado na criação de novas figuras típicas penais ou no agravamento de outras, como a panacéia ao que se chama violência institucionalizada, crime organizado e outros nomes mais. De outro lado, faz crer o Estado, também fundamentado no chamado "desejo de punição popular", que se confunde desgraçadamente com a preciosa figura jurídica da prevenção geral positiva (resguardo do sentimento jurídico da comunidade), que mantendo o indivíduo mais tempo preso, fazendo com que ele cumpra o máximo de tempo possível a pena em regime fechado, como por exemplo nos chamados "crimes de especial gravidade" (uma nova nomenclatura para se identificar o terrível malfeitor, o facínora, o não cidadão, aquele que não sou eu, em substituição ao hediondo termo hediondo), estará cumprindo sua única missão constitucional penal de prevenir condutas que afrontam a desejável paz social (veja-se, a propósito, as emendas que se pretende fazer ao Código Penal ,nºs 286/95 e 287/95, do Ministério da Justiça).

Reincidindo o Estado com projetos de lei de tão baixo quilate, na medida em que revela com maior intensidade a sua deficiência e incapacidade fundamentais em outras áreas que lhe são afins (saúde, escola, cultura, ecologia, etc.), expele uma vez mais seu fogo draconiano na direção dos desfavorecidos e a comunidade, embora não o saiba em nível de consciência desperta, espera ansiosamente pela vinda do herói salvador.

Há muito não se admite que o Estado detenha entre suas funções a de punir seus súditos, como substituto secular da igreja. Ademais, diferencia-se substancialmente a sociedade de hoje daquele em que viveu Rousseau: de forma nenhuma um cidadão em sã consciência autorizaria ser castigado pelo Estado quando pecasse. Todavia, admitiria que determinados comportamentos que voluntariamente praticasse em sociedade fossem prevenidos, corrigidos, em prol da comunidade em que vive. O castigo, a punição, é uma questão teológica, não afeta ao Estado, que tem apenas o dever de prevenir delitos, mas nunca de castigar pela prática de comportamentos que não lhe convêm: a pena tem apenas função preventiva, afastada a execrável idéia de punição. O Estado uma vez mais confunde ambos conceitos nos referidos projetos de lei, agravando penas (por exemplo a do roubo qualificado pela lesão corporal grave), criando figuras penais novas (furto em que o objeto, um veículo, seja transportado para outro Estado, v.g.), "para o combate de uma inquietante forma de criminalidade de nossos dias" (sic, E. M. 287/95). Procura de forma inegável castigar mais, punir mais, desprestigiando a velha idéia do "labelling aproach" ou etiquetamento, e a ironia da desviação secundária, tanto propalada pelos criminólogos e sociólogos ao longo deste século. Vale dizer, não se previne crime algum através de terror penal.

Não se trata de uma guerra, como pretende o Estado. Não se trata de localizar o inimigo e puni-lo com mais rigor para se alcançar a utópica paz social. Não é esse o caminho que deve seguir uma moderna sociedade, mas sim aquele que compreende as vicissitudes e o drama do homem cosmopolita, que procura dar a ele novas possibilidades de vida, que não lhe retira a qualidade de cidadão de direitos e obrigações, que procura reintegrá-lo, quando possível, em uma comunidade de reconhecidos valores culturais e religiosos.

Chegando ao final do século temos conosco uma grande missão transformadora. Temos que superar problemas de ordem filosófica, já apontados em 1764 pelo Marquês de Beccaria, se almejamos uma sociedade que se valha pelo respeito aos direitos humanos.

Lycurgo de Castro Santos

SANTOS, Lycurgo de Castro. Divagaçöes sobre a crise do Direito Penal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.33, p. 08, set. 1995.

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