terça-feira, 2 de setembro de 2008

Artigo: Diferença entre criminoso, criminalidade e criminalização

Encerrando a trilogia de análise dos julgados disponibilizados no banco de dados do Tribunal de Justiça de Mato Grosso pelo roteiro da criminologia crítica, devemos nos adiantar nos conceitos que emprestam nome ao título — criminoso, criminalidade e criminalização.

É fácil e cômoda a constatação do criminoso e da criminalidade, mormente quando traga consigo uma forte seletividade social em delitos patrimoniais, cometidos por pessoas com extratos marginalizados da população, na maioria. Veremos, contudo, que afora raríssimas exceções, os juízes ou desconhecem ou preferem ignorar o conceito de criminalização. Antes de avançar, novamente indico que não usei aspas e sim itálico, facilitando a leitura das citações judiciais ipsis literis.

Um primeiro problema impõe-se na análise da ‘delinqüência’. Confunde-se o termo com “autoria” e condena-se o acusado ‘porque é delinqüente’ e não porque foi comprovada a autoria. Comprova-se adesão ao ‘direito penal do autor’. Vejamos três julgados:

a) a solução absolutória é exigida quando o substrato probatório evidencia dúvida sobre a delinqüência daquele imputado;

b) considerando que o acusado tem a personalidade voltada para a delinqüência, até mesmo porque já praticou outros atos delituosos antes da maioridade, fatos esses que não pode ser considerado como antecedentes, mas que também não podem passar despercebidos;

c) portanto está cabalmente esclarecida a autoria do acusado, tendo em vista que ele, conforme percebi do conteúdo probatório, possui personalidade voltada à delinqüência.

Superada a constatação de que se julga pela personalidade do autor, categorização jurídica ontológica e ilegal num estado democrático de direito, adianto-me nas citações de julgados que constatam uma ‘personalidade voltada à delinqüência’, num estudo ‘psicológico clínico’ estranho ao contexto jurídico. Passo a citar cinco trechos de sentenças judiciais que rumam em uníssono para um conceito sólido de criminalidade pela ‘deformação’ ou ‘doença’ do acusado:

a) a personalidade revela-se dissimulada e voltada para a delinqüência; os motivos do crime exsurgiram da cupidez em obter vantagem fácil a custa do patrimônio alheio;

b) da conduta social: pesa em desfavor do réu o fato de ele se dedicar à ociosidade e à delinqüência, desde os 13 anos de idade, conforme ele próprio narrou;

c) não há falar em medida sócio-educativa mais branda para menor que e reincidente, mostrando personalidade voltada à delinqüência;

d) apesar de não constar nos autos exame psicológico do acusado, este já foi condenado pelas práticas de furto por reiteradas vezes, o que demonstra que é voltado para a delinqüência;

e) os antecedentes do réu não são favoráveis, a conduta social do réu é desfavorável como é fato notório neste município, personalidade do réu é voltada à delinqüência, motivo para a prática delituosa é normal.

Como podemos notar, há uma clara ‘normalização’ de matiz neopositivista no julgar, ou seja, para alguns magistrados, diante da ‘personalidade distorcida’ do acusado, há uma ‘tendência inata, natural’ para delinqüir, quase como um impulso íntimo, um determinismo atávico. Mesmo em notórios casos de dependência química, o culpado é a ‘personalidade fraca’ do réu. Eis duas ilustrações:

a) a conduta social não é boa, eis que a acusada é dependente química nessa condição encontra estímulos para praticar crimes. A personalidade revela-se voltada para a delinqüência;

b) sua conduta social não é boa, costuma-se apresentar embriagado, e geralmente descontrolado quando em estado etílico. A personalidade do réu revela-se voltada para a delinqüência.

Sobram casos mais graves no julgamento da personalidade. Separei julgamentos que, em meu sentir, são paradigmáticos. Ou se trata de muita ingenuidade, simplismo e ignorância teórica ou realmente tem-se aplicado o ‘direito penal do inimigo’ no Brasil. Mesmo não havendo antecedentes criminais, desconhecendo-se a conduta do acusado, é citada a ‘inclinação’, ou pior, a ‘opção’ para a delinqüência, como se fosse a escolha de um vestibular:

a) se pode extrair dos autos, péssima é sua conduta; valores totalmente invertidos, com inclinação à delinqüência. Quanto aos motivos: Não esclarecidos nos autos;

b) não possui antecedentes criminais; sua conduta social merece reparos, eis que o seu comportamento é desassociado do meio em que vive; denota-se, ainda, personalidade voltada para a delinqüência;

c) O réu registra antecedentes criminais. Conduta social desconhecida. De sua personalidade infere-se uma tendência para a delinqüência;

d) conduta social não esclarecida, porém tudo indica que deixa a desejar. Personalidade mal formada, com a inclinação para a delinqüência.

Felizmente, salva-se a Constituição em dois julgamentos de Hanae Yamamura e de André Simões, quando estes dois julgadores ao não desconhecer a co-responsabilidade estatal, respectivamente, afirmam:

a) incumbe ao Estado-acusador o ônus da prova da culpa do acusado, devendo o órgão investido de ofício judicante resistir à tendência de, em época de delinqüência exacerbada, caminhar para a persecução criminal a ferro e fogo, com desprezo as normas comezinhas e, depois,

b) não há nos autos qualquer indicativo que o Estado, por suas notórias omissões, tenha imposto ao Acusado uma situação de exclusão tal que não lhe fornecesse outra saída que não a delinqüência.

Esses últimos sabem que, antes da criminalidade e do criminoso, há a criminalização, isto é, essa fábrica de produzir um exército de subempregados sem escolarização, típico do rótulo que não incide sobre um homem e sim sobre uma classe marginal onde, ela mesma, passa a ser perigosa na ótica oficial. Concluo com uma nota triste — julga-se seletivamente.

Eduardo Mahon: é advogado em Mato Grosso e Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 2 de setembro de 2008

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