sábado, 6 de setembro de 2008

Artigo: Crime, castigo e erro judiciário

1. Ainda que Deus tenha dado ao homem, único entre todas as criaturas porte ereto, com preceito de contemplar os céus e fitar os olhos nas estrelas, como em elegante ritmo cantou o poeta (Ovídio, Metamorfose, I, 85), são porém mais que muitas as vezes em que, deslembrado de sua augusta predestinação, abdica da própria dignidade e inclina-se para a terra. E, o que é mais, obrando já com insigne desconsideração das regras do convívio social, arroja-se perdidamente à carreira dos delitos.

Aí, como a organismo doente que lhe importa sarar, entra o Estado a aplicar-lhe sua medicina; e o estipêndio do crime bem se sabe que é o castigo ou pena.

Posto se proclame, e com alguma verdade, que a história da pena é a de sua paulatina abolição, não há entretanto eliminá-la do corpo das leis repressivas, que isto implicaria retorno da civilização à barbárie ("Suprima-se a pena [quod Deus avertat ] e o crime seria, talvez., a lei da maioria. É indubitável a eficácia inibidora do castigo", Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 1978, vol. I, t. II, pág. 196).

Mas seu caráter não é só aflitivo, ou de retribuição penal mal cometido; é sobretudo o fim da pena reeducar o delinqüente pela disciplina da vontade, prática da virtude e amor do trabalho, este o principalíssimo dos fatores de promoção humana.

Doutrina é esta que geralmente professam aqueles a quem tocou a meritória tarefa de recuperar os desajustados sociais, como se tira do dístico expressivo gravado no frontão da Penitenciária de São Paulo: "Aqui, o trabalho, a disciplina e a bondade resgatam a falta cometida e reconduzem o homem à comunhão social".

2. De ser a pena uma necessidade social incoercível não procede, contudo deva infligir-se ordinariamente em grau extremado. Ao invés, nisto de imposição de castigo corporal deve-se atender sempre à moderação.

As penas de duração longa padecem de inconveniente conspícul, uma vez que, na conformidade das palavras do ilustre Juiz João Baptista Herkenhoff, "retirariam dos réus todo sentido de esperança: por mais hediondos que tenham sido os crimes praticados, esse sentimento não pode ser eliminado do homem" (Uma Porta para o Homem no Direito Criminal, 2ª ed., pág. 163). E não o pode porque, profundo que seja o abismo em que um dia se precipitara, ao homem nunca lhe adormece no peito o desejo ardente de retomar o curso de sua vida e tornar aos seus.

Por mais forte razão, ela não poderá desamparar aquele que, tendo perdido a liberdade, foi como se tudo já perdera: o encarcerado.

Em suma: a pena demasiado severa, sobre não recuperar o infrator (esforçado argumento para que se não aplique), ainda "mata a esperança, que é o último remédio que deixou a natureza a todos os males", como pregou o sublime Vieira (Sermões, 1959, t. III, pág. 278).

3. Mais que a sentença draconiana – que impõe ao réu pena que, de muito rigorosa, parece antes perpétua – é para recear a que condena o inocente. Gênero de desgraça grande é esse, que, por evitá-lo, o emprego de diligência, ainda em seu grau máximo, sempre se teve por muito pouco.

A condenação do inocente à pena última não raro meteu em escrúpulo até a corações empedermidos. De Nero, monstro coroado, refere com efeito Suetônio que, certo dia, em que o convidaram a assinar uma condenação capital, disse: "Tomara não soubesse escrever!" (cƒ. As Vidas dos Doze Césares, 1955, pág. 269, trad. Sady Garibaldi). Outro tanto passou com o imperial Pedro II. Constando-lhe que Mota Coqueiro, a quem se dera morte no patíbulo, fora vítima de erro judiciário, no mesmo ponto mandou quebrar a pena com que lhe negara pedido de clemência e "nunca mais quis assinar nenhuma condenação" (Raimundo de Menezes, Crimes e Criminosos Célebres, 2ª ed., pág. 123).

A todos assusta e angustia o espectro do erro, no entanto mais àqueles que foram investidos na terrível quão bela função de julgar, que é atributo próprio só da Divindade.

De feito, julgando sempre, estão sujeitos mais que ninguém à tirania implacável desta contingência humana que é o erro.

Não é tudo. Ouçamos a esse varão abalizado em virtudes e letras, de quem justamente se orgulha e ufana a Magistratura brasileira, o Juiz Eliézer Rosa, cujas palavras vêm aqui de molde: "Nos tribunais, o medo de errar é muito mais orpimente que num Juiz de primeiro grau. Saibam todos que é esta uma imensa e dolorosa verdade. Ser relator dum feito é terrivelmente penoso, pela consciência que tem de que seu voto pode ser acompanhado e, por mais e melhor que tenha pensado em acertar, o insidioso erro pode esconder-se na pureza de seu pensamento" (A Voz da Toga, 2ª ed., págs. 50 e 51).

Este mesmo temor de errar foi, decerto, o que inspirou à sabedoria humana a regra comum de interpretação da dúvida – "In dubio pro reo" – , porque "a condenação do inocente constitui maior desgraça para a sociedade do que para o condenado, sendo preferível, segundo a velha sentença de Berryer, ficarem impunes muitos culpados, do que punido quem devera ser absolvido" (Firmino Whitaker, Júri, 6ª ed., pág. 89).

Carlos Biasotti
Advogado em São Paulo

BIASOTTI, Carlos. Crime, castigo e erro judiciário. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.34, p. 05, out. 1995.

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