quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Artigo: Concepção axiológica do tipo

O exame da história da humanidade põe a nu que ela se divide em ciclos caracterizados por ordens axiológicas. As civilizações devem ser estudadas à luz de suas constelações axiológicas. A cada estágio completo do desenvolvimento sócio-cultural corresponde particularizada tábua de valores. Os valores realizam-se na fluência mesma do processo histórico-cultural. O viver é um diuturno e imorredouro realizar de valores no fluir incessante e progressivo do processo histório-cultural. São precisamente os valores que tornam a perfectibilidade humana poderoso instrumento de aperfeiçoamento pessoal e coletivo. Busca o homem realizar seus fins orientado pelo farol axiológico. A sociedade organiza-se e marcha segundo certo sistema axiológico de referência. Inconcebível vida comunitária desvinculada de dada escala de valores. O mundo dos valores inspira e governa a totalidade da vida humana, a qual se objetiva na história.

Há valores de cuja concreta realização depende a própria continuidade do grupamento social. A vida, a integridade física, a dignidade da pessoa humana, o trabalho, são bens a que a comunidade agrega valores cuja realização, no curso do processo histórico-cultural, configura autêntica condicionalidade do próprio processo. Cabe, pois, aos que exercem o poder político organizado produzir modelos hábeis para tutelar os valores fundamentais da vida comunitária. No campo específico do Direito Penal, compete ao legislador executar tríplice tarefa:

1) identificar o sistema axiológico de referência em vigor no momento histórico-cultural da produção normativa;

2) debruçar-se por sobre a experiência fluente para diagnosticar as condutas atentatórias daquele sistema axiológico;

3) imprimir naquelas condutas o selo da tipicidade protetora da objetivação histórica dos valores (o legislador penal transporta para o tipo o bem e sua carga xifópaga de signficação axiológica).

Verifica-se que a matéria de proibição não pode ser escolhida arbitrariamente pelo legislador penal. Apenas as condutas deletérias da espinha dorsal axiológica do sistema global de valores é que devem ser transportados pelo legislador para a órbita planetária típica. O próprio sistema axiológico de referência impõe limites negativos à atividade legislativa construtora de figuras típicas. Não se admite, portanto, que o legislador penal construa tipos senão para proteger valores vitais para a vida comunitária. E tal proteção axiológica se dá mediante proibição de condutas. O tipo é modelo superior de tutela histórica-cultural concreta da ordem axiológica coeva da elaboração normativa.

Nota específica da elaboração típica é a circunstancialidade histórico-cultural. A produção normativa é histórica, vale dizer, rebenta no curso do processo histórico-cultural, de molde de jeito que o legislador penal se não pode apartar da tábua de valores dominantes no momento em que produz as figuras típicas.

O sistema axiológico de referência impregna de conteúdo estimativo toda a atividade produtora típica. A mais disso e necessariamente, os valores parcelares fundamentais dele incorporam-se nas figuras típicas para a viventá-las e condicioná-las historicamente. Aqui reside a razão por que há notável, irritante e daninho divórcio entre a lei penal vigente e a realidade social. Os valores são inexauríveis; nada obstante, na transição de um para outro ciclo histórico-cultural, certos valores adormecem no seio do sistema axiológico. Em contrapartida, outros valores despertam para inspirar condutas sociais dantes iluminadas pelos valores agora adormecidos. O sono axiológico repercute nas figuras típicas, suprimindo-lhes a seiva vital. Não obstante isso, a lei penal subsiste já pela inércia propositada do legislador, já por sua censurável insensibilidade para a captação das mudanças qualitativas ocorridas no âmago do sistema axiológico de referência. A estas notas supressoras de qualificação subjetiva para o exercício da delicada atividade jurisferante soma-se a não menos delicada missão juridicional. Diante das mudanças qualitativas no sistema axiológico de referência, as decisões judiciárias, numa prestação de vassalagem ao formalismo jusfilosófico, acarneiram-se atrás do tipo putrefeito e sopram-lhe vida postiça, artificial, cerebrina. Decisões quejandas são conculcadas pelo tribunal axiológico. Não resistem elas ao impacto histórico das alterações internas do sistema axiológico de referência, porquanto tais alterações cadaverizam o tipo pela extinção de seu princípio vital, qual seja, o valor que lhe ditou a elaboração cogente.

Exemplifiquemos. Quando se editou a norma incriminadora do "jogo do bicho", o sistema axiológico de referência então vigorante admitia a proteção jurídico-positiva do valor "economia popular". De uns tempo a esta parte, operou-se tal mudança no conteúdo estimativo do sistema de referência que o tipo penal pertinente tem de ser mantido na UTI judiciária onde leva vida artificial garantida por decisões necessariamente reiteradas e igualmente farisáicas. O crime de sedução é outro notável exemplo de supressão do conteúdo axiológico do tipo. A virgindade, a inexperiência e a justificável confiança são bens aos quais o sistema axiológico de referência recusa carga de vetorialidade digna da proteção típica.

A incidência, a interpretação e a aplicação da norma jurídico-penal estão subordinadas às entidades vetoriais do sistema. A norma jurídica abriga em si mais do que mero e álgido juízo lógico-formal. O valor é dimensão constitutiva da norma jurídica. A tensão dialética fático-axiológica, supera-a a norma jurídica ora proibindo a conduta por desvaliosa, ora permitindo-a dada a presença de circunstâncias excepicionais desniveladoras da equivalência natural dos valores em conflito. Se o valor protegido no tipo já se desprendeu do bem a que outrora se vinculava, a incidência do preceito sobre o suporte fático é aparente uma vez que toda a incidência é conseqüência automática da dimensão axiológica viva da norma, a qual dimensão condiciona, ipso-facto, a interpretação e a aplicação da mesma norma. Relevantíssima consequência se extrai desta afirmação: como a dimensão axiológica não se fossiliza na norma, entre o fato e o julgamento não pode mediar grande distância cronológica a dimensão estimativa abre espaço para a ineficácia sócio-cultural da resposta penal.

A missão do Direito Penal é proteger, por meio do processo de tipificação, a parte da ordem axiológica sem cuja realização histórico-cultural concreta a vida comunitária se putrefaz.

José Mauro Rodrigues Novaes, Juiz de Direito

NOVAES, José Mauro Rodrigues. Concepçäo axiológica do tipo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.39, p. 02, mar. 1996.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog