terça-feira, 16 de setembro de 2008

Artigo: Biotecnologia e vitimização

Tendo em vista as contravertidas opiniões de renomados juristas acerca do tema, damos destaque ao texto Biotecnologia e Vitimização, da lavra do ilustre professor João Marcello de Araujo Júnior, que defende a tese de ser necessário fazer incidir o Direito Penal na biotecnologia, mais especificamente, nas experiências não terapêuticas realizadas com seres humanos. Está aberto o debate. Aguardamos novas manifestações a respeito do assunto.
João Marcello de Araujo Júnior

No mundo atual o homem dorme sábio e acorda ignorante. São tão grandes os avanços da ciência e da técnica, que aquilo que ontem parecia inalcançavel, hoje é coisa corriqueira, que não desperta mais qualquer emoção. É o que acontece com a biotecnologia.

Hoje, parte do corpo de um homem já pode ser integrada ao de outro, para salvar a vida deste; um mulher pode carregar em seu ventre o fruto da concepção de outra; a medicina pode fazer com que pessoas, que outrora não podiam ter filhos, se transformem, quase que miraculosamente, em pais e mães verdadeiros; os medicamentos permitiram que doenças tidas, até há pouco tempo, como incuráveis, passassem a ter os efeitos de meros resfriados; a vida, atualmente, já pode ser criada em laboratório e mantida em crio-conservação; a ciência médica já logrou reproduzir indivíduos absolutamente iguais (clones) e produzir seres que não existem na natureza (quimeras). Estas são, apenas, algumas das maravilhas que a biotecnologia pode realizar em benefício do homem, entretanto, todo esse avanço notável, possui, infelizmente, os seus efeitos perversos. É desse efeitos perversos, que iremos tratar.

Seria impossível pretender examinar todas as formas de vitimação, que esse efeitos perversos sejam capazes de provocar. Falar dos riscos da produção de clones humanos, por exemplo, exigiria um livro inteiro, maior, talvez, que o famoso "Meninos do Brasil". O mesmo ocorreria, se resolvessemos tratar das quimeras, dos possíveis exércitos de semi-homens, que delas poderiam surgir. Também falar das conseqüências daninhas que podem advir da procriação assistida, ocuparia tempo e espaço de que não dispomos, isto, para não dizermos nada sobre a vitimização de indivíduos ainda não nascidos, como no caso da destruição de embriões excedentes, nas hipóteses de FIVET.

Por todos esses motivos, limitaremos nossa comunicação ao exame da vitimização conseqüente das experimentações em seres humanos.

Experiências com seres humanos

O progresso da medicina exige, necessariamente, a realização de experiências em seres humanos. É verdade, também, que estas investigações não podem ficar entregues à sua própria sorte, sujeitas, apenas, a auto-regulação da consciência do pesquisador e alheias a alguns princípios éticos e legais fundamentais.

Por isso, a sociedade internacional tem procurado estabelecer algumas regras, como se pode perceber do chamado Código de Nuremberg; da Declaraçnao de Helsinki (1964), revista em Tóquio (1975); das Diretrizes propostas pela Organização Mundial da Saúde, e pelo Conselho das Organizações Internacionais de Ciências Médicas, estas de 1982. Tais princípios, entretanto, não têm, por si mesmos, força normativa, razão pela qual, indispensável se torna sua consagração pela legislação interna de cada país.

No Brasil, dentre inúmeros não noticiados, tivemos dois casos, que comoveram nossa sociedade.

Um deles foi o da aplicação dos anticonceptivos hormonais chamados "Norplant R" e "Norplant II". A substância ativa empregada era o progestágeno levonorgestral, cujos esteróides estavam contidos em cápsulas de "sislatic R" e eram injetados no tecido subcutâneo. Este método foi desenvolvido pelo "Population Council", com sede em Nova York e fabricado pelo "Leiras Pharmaceutical", na Finlândia. Tal substância foi aplicada ilegalmente em 3.103 mulheres brasileiras, produzindo em um grande número delas graves padecimentos.

O outro caso, ocorreu mais recentemente, em Brasília, quando alimentos em pó para crianças, foram ministrados a meninos e meninas de até dezoito meses de idade, recolhidos a creches que recebiam contribuições oficiais, provocando neles vômitos e diarréia, levando-os quase à morte.

Tais fatos ocorreram graças à nossa indigência legislativa, que outorga à doutrina a relevante missão de fixar os princípios fundamentais a serem recolhidos pelo legislador.

A matéria em exame não pode ser estudada unitariamente, isto porque, existem duas espécies de experiências com seres humanos: as terapêuticas e as não terapêuticas. As experiências terapêuticas são as realizadas in anima nobili, ou seja, destinadas ao tratamento do paciente, quando não existirem terapêuticas estandardizadas ou estas não tiverem surtido efeito. As experiências não terapêuticas são aquelas realizadas sem finalidade curativa, em indivíduos sadios, objetivando, apenas, verificar o seu efeito sobre o organismo humano.

Entendemos que as experiências não terapêuticas somente deverão ser levadas a efeito, quando não for possível realizá-las através de simuladores ou em animais. Além disso, devem ficar sujeitas aos seguintes princípios:

Princípio da plena capacidade de consentir – Somente as pessoas com plena capacidade de consentir poderão submeter-se a essas experiências. Com a expressão "plena capacidade de consentir", queremos no referir àqueles indivíduos que, embora capazes do ponto de vista do Direito Civil, não estejam submetidos a qualquer espécie de restrição de liberdade, de fato ou de direito. Assim, seriam ilícitas as experiências com pessoas sujeitas à custódia do Estado (presos, doentes mentais, menores abandonados, etc...) ainda que com base em uma promessa de recompensa ou por puro espírito de solidariedade humana.

Princípio da legalidade – Esse tipo de investigação científica deve ajustar-se, rigorosamente, aos comandos legais de autorização e fiscalização emanados dos órgãos públicos e corporativos competentes.

Princípio do objetivo científico – Somente pessoal cientificamente qualificado poderá participar de tais pesquisas, devendo ser inteiramente independente, do ponto de vista profissional, das pessoas ou instituições que proporcionem apoio financeiro ou tenham interesses nos resultados das investigações. Além disso, os pesquisadores deverão buscar, exclusivamente, objetivos científicos, jamais abusando de sua condição na relação com o indivíduo submetido a experiência. Esta, nunca deverá ser finalidade bélica, política ou racial.

Princípio do respeito à vida – Serão intoleráveis as experiências que possam provocar a morte.

Princípio da proporcionalidade – A relação vantagem/risco deverá ser levada sempre em consideração. Assim, quando o elemento risco for extremamente preponderante a experiência deverá ser considerada ilícita.

Princípio da seguridade – Os indivíduos submetidos às experimentações não terapêuticas deverão estar necessariamente, cobertos por alguma espécie de seguro, que lhes permita uma rápida indenização pelo danos, que, eventualmente, venham a sofrer.

Princípio da gratuidade – A participação em experiências não terapêuticas deve ser gratuita e o consentimento deverá ser expresso por escrito, em documento que contenha todos os princípios fundamentais aqui expostos.

Princípio da universalidade – A fim de evitar que os pesquisadores de um país procurem realizar suas pesquisas em outros, onde a regulamentação jurídica seja menos rigorosa, os Estados deverão celebrar o maior número possível de convenções internacionais, regionais multilaterais e bilaterais, com o fim de universalizar estes princípios essenciais de respeito a pessoa humana.

Com o fim de evitar a vitimização, muitas vezes fatal, conseqüente das experimentações em seres humanos, sugerimos ao governo brasileiro e, através dele aos demais membros da sociedade internacional, que legislem sobre o tema, criminalizando a infração aos princípios básicos aqui expostos (salvante, obviamente, o último). As figuras típicas a serem criadas, do ponto de vista dogmático, deverão revestir a forma do "delito/obstáculo", devendo a efetiva causação do dano, constituir condição de maior punibilidade.

João Marcello de Araujo Júnior
Professor titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, de Criminologia da Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas e coordenador do Mestrado da Unesa-Universidade Estácio de Sá

ARAUJO JÚNIOR, João Marcello de. Biotecnologia e vitimização. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.38, p. 07, fev. 1996.

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