sábado, 6 de setembro de 2008

Artigo: Abolição do rol dos culpados

"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se a confiança: todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades."
(Camões)

Utilidade e eficiência do Processo.

O processo tem duas preciosas utilidades: instrumento do Estado e do indivíduo. Se é por seu intermédio que o Estado presta a jurisdição, certas vezes dando satisfação à pretensão punitiva, é por meio dele que o cidadão acusado pode ter sua inocência confirmada, ou, se for culpado, evitar decisões sumárias, impensadas e a vindita coletiva. Nenhum outro caminho permite a apuração da verdade o respeito ao Justo Processo Legal. Este princípio, o due process oƒ law norte-americano, foi estabelecido no art. 5º, LIV, da Carta Magna, embora com tradução que valoriza apenas seu aspecto formal (procedimento) e não o aspecto material (razoabilidade). Não obstante, ester princípio abarca as exigências de contraditório, ampla defesa, inadmissibilidade de provas ilícitas, fundamentação das decisões judiciárias, etc. Nisso, vislumbramos nosso processo evoluindo.

Por outro lado, o processo, vem vários momentos, se perde em formalidades e procedimentos inúteis, como um atleta que, descuidado, passa a engordar além da conta. Tal como um fundista fora de forma, o processo termina andando lento e sem êxito, seja para o Estado, seja para o cidadão. Nesse sentido, preciosa é a missão do Poder Legislativo: oferecer à sociedade um Código de Processo Penal moderno, retirando o passado e plantando o futuro. O Congresso, para tanto, conta com excelentes parlamentares e, além disso, pode dispor do auxílio dos doutrinadores e dos membros do Judiciário, que, especialistas no assunto, poderão colaborar com a edição de modificações legislativas úteis aos desígnios comuns de consecução de Justiça.

Nosso Código de Processo Penal possui inúmeros procedimentos complementares sem préstimo e que não mais se justificam em face do novo ordenamento constitucional. Nesses casos, é preciso abdicar da cômoda repetição de mecanismos tradicionais. Objeto desse modesto trabalho, pensamos que o rol dos culpados, livro cartorários onde são lançados os nomes das pessoas condenadas, deve ser abolido.

Rol dos Culpados, Art. 5º, LVII da CF e Trânsito em julgado da sentença penal condenatória

O Código de Processo Penal, de 1941, diz o seguinte:

"Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível:

I - (...)

II - ser o nome do réu lançado no rol dos culpados."

Igual determinação existe no caso do réu ser pronunciado (art. 408, § 1º).

A Constituição de 1988, no art. 5º, estabeleceu:

"LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;"

A Constituição adotou, assim, o princípio da presunção de inocência, estado inicial que ampara todos os cidadãos e que só cede nos termos da Lei Fundamental. A inocência presumida não impede, note-se, a realização de investigações, a denúncia ou a prisão cautelar, desde que presentes os seus pressupostos. Assim, não comungamos com a idéia de que a Carta Maior apenas impõe uma presunção de não culpa, como alguns sustentam (e.g., Damásio de Jesus). Aliás, não há muita diferença entre dizer que alguém é inocente ou não culpado. Existem estados que não conhecem fases intermediárias, sendo exemplo deles a gravidez, a virgindade e a inocência. Observe-se que ao redigir o texto, o legislador utilizou os termos "ninguém será considerado culpado", indicando que partiu-se do princípio de que, sendo o cidadão presumidamente inocente, seria tecnicamente incorreto repetir, na lei, o que é óbvio. Assim, todos são inocentes e, para alguém ser considerado culpado, será preciso que uma sentença condenatória transitada em julgado desfaça essa presunção inata (inocência).

independentemente da discussão sobre a melhor interpretação do art. 5º, LVII, da Carta Política, a doutrina e jurisprudência estão entendendo, por ampla maioria, que o art. 393, I, e 408, § 1º, viram-se parcialmente não recepcionados pela nova ordem constitucional. O festejado professor Damásio de Jesus entende, em posição minoritária, que o art. 393, II do CPP não foi revogado. Caminhando em sentido contrário, aquele que nos parece acertado, encontramos Fernando da Costa Tourinho Filho, Nagib Slaibi Filho, Júlio F. Mirabete e outros. Os Tribunais, com algumas poucas decisões divergentes, também estão considerando que o nome do acusado não poderá ser lançado no rol dos culpados senão depois do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Abolição do Rol dos Culpados.

Muito mais do que só adiar o momento do lançamento do nome do condenado no rol dos culpados, o que se depreende do art. 5º, LVII, a nova Constituição nos impele a abolir o livro das culpas.

O Rol dos Culpados significa um resquício dos tempos medievais, onde os condenados eram marcados para que sua desonra fosse percebida por todos. Como sinal de abjeção extrema, alguns eram tatuados na testa, outros no corpo. Assim como eram marcados os escravos, marcavam-se os criminosos. Eram tempos antigos, onde os crimes eram vistos como vil pecado e os criminosos como pessoas irremediavelmente ruins. Hoje já concordamos que o crime é apenas uma das faces dos ajustamentos sociais que o criminoso, muitas vezes, é fruto da miserabilidade humana ou da própria mesquinharia grupal. Este livro nos lembra também a idéia religiosa do livro com o nome dos justos, só que, ao contrário, com o nome dos ímpios, seguindo mais puro estilo da Inquisição.

Nem quando Deus marcou Caim pelo homicídio de Abel houve tal intenção de infâmia, já que o intento divino era protetivo: "E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que não o ferisse quem quer que o encontrasse." (Gênesis 4:15). Marcar o criminoso como o gado, ou decepar-lhe a mão, não são condutas com lugar no processo moderno, onde já se vê o condenado como um componente da sociedade, e não um monstro a ser tratado com ignomínia, marcado e vilipendiado.

Isto é o que o Rol dos Culpados nos lembra e que, já antes de 1988, poderia ter sido revisto. Porém, a Constituição elegeu como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e como dois de seus objetivos fundamentais a erradicação da marginalização (art. 3º, III) e a eliminação de toda forma de discriminação (art. 3º, V). Logo, temos que concluir que já não há lugar no sistema jurídico brasileiro para o Rol dos Culpados.

William Douglas Resinente dos Santos
Juiz federal do Estado do Rio de Janeiro e professor da UFF

SANTOS, William Douglas Resinente dos. Abolição do rol dos culpados. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.34, p. 06, out. 1995.

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