sábado, 30 de agosto de 2008

Medo de bala e da polícia




Você tem medo do quê? A pergunta é tão ampla que dá até medo de errar, mas a múltipla escolha facilita, e então descobre-se que a maioria das pessoas tem mais medo da mesma coisa: tiro.

Uma pesquisa de vitimização realizada pelo Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ISP) revelou que os maiores medos da população da região metropolitana do Rio são bala perdida (57%) e tiroteio (43%) em seus bairros.

“As armas de fogo devem ser tiradas de circulação”, afirmou a socióloga Yolanda Catão, destacando que 85% dos roubos de veículos são feitos com armas de fogo. Ela e outros especialistas em segurança e criminalidade foram convidados pelo ISP para comentar os dados da pesquisa no seu lançamento, em 19 de agosto, no Hotel Novo Mundo, no Flamengo.

Durante dois anos e meio, cerca de 30 pesquisadores percorreram mais de 75 mil domicílios na região metropolitana do estado do Rio de Janeiro para contabilizar possíveis vítimas de alguma espécie de delito. Um questionário foi aplicado a 4.553 pessoas vítimas, estimando 1.750.073 domicílios e 8.696.561 indivíduos. Dos entrevistados, a maioria é mulher (53,7%) e mora da cidade do Rio de Janeiro (51,5%). Moradores dos municípios de São Gonçalo, Duque de Caxias e Nova Iguaçu representaram juntos 25,8% dos entrevistados.

Foi registrada uma taxa de vitimização de 39%, o que equivale ao número de respostas afirmativas de pelo menos um dos moradores de cada domicílio para casos de roubo, furto ou agressão sofridos no tempo de corte da pesquisa – de janeiro de 2002 a dezembro de 2006. O roubo foi a vitimização mais comum, com 46% das respostas.

A possibilidade de cruzamento das estatísticas oficiais, baseadas nos registros de ocorrência feitos em delegacias, com os dados gerados pela pesquisa de vitimização anima os especialistas. “Ela é um grande avanço na produção das estatísticas criminais oficiais”, afirmou Yolanda Catão. Para a socióloga, a pressão da sociedade civil levou à conscientização do governo sobre a importância da realização da pesquisa para o planejamento da segurança.

É sabido que os registros oficiais são subnotificados. A pesquisa permite estimar as taxas de subnotificação por tipo de delito, além de estimar com maior precisão o perfil das vítimas e avaliar o impacto dos delitos em suas vidas. “É uma riquíssima base de dados. A possibilidade de trabalho para pesquisadores é enorme”, comentou Yolanda. Segundo ela, não há mais escassez de dados, mas existem muitas pesquisas que não são disponibilizadas. “Bases de dados são engavetadas por ciúme”, denunciou.

Uma crítica dos pesquisadores é o tempo de cinco anos que a pesquisa cobre. Eles defendem que a pesquisa seja feita anualmente, e sempre aprimorada em sua metodologia.

Coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, do Conflito e da Violência Urbana da UFRJ, o sociólogo Michel Misse comparou os registros policiais aos resultados da pesquisa de vitimização e encontrou “diferenças enormes”.

Há taxas de subnotificação de até 94,6%, como no caso de ofensa sexual – de quase 70 mil vítimas, nem 4 mil fizeram registro. Misse optou por trabalhar com a média de cada tipo de crime registrado nos anos de 2006 e 2007 e a média dos últimos doze meses referidos pelos entrevistados, chegando na tabela ao lado.

Povo não confia na polícia

Depois do medo de bala perdida e tiroteio em seus bairros, o terceiro medo mais apontado pelos entrevistados (37%) é ter a residência assaltada.

À luz desse dado, vale analisar outro: a distribuição de policiamento nos bairros é considerada “ruim” ou “péssima” por 70,3% da população. Além disso, mais da metade (56%) da população não confia na polícia militar e quase a metade (43%) não confia na polícia civil. Só 6,9% da população confiam totalmente na Polícia Militar e 9,2% na Polícia Civil, conforme mostram os gráficos ao lado. E mais: as pessoas não sabem muito bem a diferença entre uma e outra. Do total da população estimada, 35,3% tiveram alguma experiência com a polícia ao longo da vida.

Foi perguntado se houve algum tipo de agressão ou maus-tratos no último contato com as polícias. Contra 15 % da população estimada já foi usada uma linguagem grosseira ou um xingamento por parte de policiais;13,3% já sofreram alguma tipo de humilhação e 12,2% foram ameaçados ou intimidados. Alguns entrevistados, especialmente moradores jovens das áreas de favelas, se recusaram, inclusive, a responder o bloco do questionário relativo à polícia, apesar da insistência moderada dos pesquisadores.

O sociólogo Gláucio Soares destacou que o sentimento de insegurança aumenta muito com o efeito negativo da imagem da polícia, vista como corrupta e violenta.

A falta de confiança da população do Rio nas suas polícias foi manchete nos principais jornais brasileiros, com a divulgação da pesquisa. O ISP deu uma resposta estratégica rápida: lançou, em 27 de agosto, 12 manuais de procedimentos para as polícias. Os manuais foram desenvolvidos pelo ISP em parceria com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH) e com financiamento da União Européia – mesmos parceiros da pesquisa de vitimização. Ambos os projetos tiveram concepção e início em 2006, na gestão da antropóloga Ana Paula Mendes de Miranda, substituída no início de 2008 pelo Coronel Mario Sergio de Brito Duarte.

ISP defende que metodologia seja padrão no país

Até 2006, foram realizadas 23 pesquisas de vitimização em diferentes cidades brasileiras. Devido à falta de uniformidade na metodologia e nos processos de coleta dessas pesquisas, é difícil fazer análises comparativas consistentes. Além disso, a maior parte dessas pesquisas se limitou ao estudo de capitais, principalmente na região sudeste do Brasil.

O projeto “Desenvolvimento de Metodologia e Aplicação de Pesquisa de Vitimização na Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro” teve como objetivo desenvolver uma metodologia padrão que possa ser aplicada em qualquer lugar no Brasil, seja em municípios, regiões metropolitanas, estados ou em âmbito nacional, permitindo comparações de resultados em nível nacional e até internacional, uma vez que segue os parâmetros do International Crime Victim Survey (ICVS), desenvolvidos pelo United Nations Interregional Crime and Justice Research Institute (Unicri).

Já construção da metodologia de campo e do questionário foi baseada na experiência de diferentes pesquisas de vitimização brasileiras e recebeu contribuições de especialistas que participaram de algumas dessas pesquisas. A participação de acadêmicos continuou após o fim da pesquisa, que escreveram artigos com a análises dos dados, publicados em livro junto com a própria pesquisa.

Um dos pontos a ser melhorado é o tempo de duração do questionário - em torno de uma hora. A longa duração da entrevista gerou muitas reclamações. Quando os respondentes possuíam baixa escolaridade, situação comumente registrada, o tempo para as respostas aumentava substancialmente, chegando a mais de 90 minutos.

Pesquisadores na mira de traficantes, milicianos, porteiros e síndicos

De acordo com os pesquisadores que participaram do levantamento, os efeitos do sentimento de insegurança foram identificados mais claramente nas áreas nobres da cidade do Rio de Janeiro, sobretudo naqueles bairros com maior concentração de população de classe alta e média e com um grande número de edificações verticais. Comumente, os moradores dessas regiões refutavam as abordagens, mesmo após os esclarecimentos.

Segundo os pesquisadores, os muitos sistemas de proteção acionados nesses setores dificultaram enormemente o contato pessoal e, conseqüentemente, o trabalho da pesquisa. Primeiramente, a localização dos interfones, dentro dos prédios, submetia todo o trabalho às disposições de porteiros e síndicos. Em outros casos, a inexistência desses aparelhos sujeitava os pesquisadores a muitas horas de espera nas portarias. Para superar esses problemas, algumas estratégias foram pensadas: o envio de uma carta para os síndicos, apresentando a pesquisa, para ser afixada no mural da portaria; a distribuição de cartas nas caixas de correio dos moradores; a disponibilização de informações sobre a pesquisa no site do DataUFF, incluindo contatos e e-mails da equipe de coordenação para esclarecimentos.

Já nas áreas pobres, foi identificada uma sensação de medo em prestar informações, especialmente nos setores que abrangiam áreas de maior influência do tráfico de drogas e das milícias. Segundo os pesquisadores, no caso de locais dominados por milícias, a lógica das recusas parece apontar para o fato de que confirmar a ocorrência de vitimização no próprio local de moradia significaria atestar o não funcionamento daquilo que seria o principal objetivo da milícia: a segurança dos moradores. Já no caso das áreas com atuação de quadrilhas de traficantes de drogas, a motivação para a recusa e a insinceridade nas respostas pareceu estar ligada ao receio de ser interpretado como delator.

Em ambos os casos, o procedimento determinado e adotado pelos pesquisadores era o de, ao chegar pela primeira vez ao local, procurar imediatamente a associação de moradores. Nos casos em que não existia associação de moradores, acabava sendo inevitável que os pesquisadores se aproximassem dos traficantes ou milicianos para pedir informações. Essa atitude demonstrada pelos pesquisadores, segundo o ISP, sinalizava transparência e não-interferência na rotina da comunidade.

Mesmo que a presença e a intimidação por parte de traficantes de drogas e milicianos não tenham sido suficientes para impedir a realização do trabalho, a vigilância incômoda dessas pessoas foi uma constante em muitos desses setores.

Freqüentemente, a chegada dos pesquisadores nas comunidades mais pobres gerava expectativas de que o trabalho viesse a trazer rápidos benefícios para a condição social dos moradores.

Comunidade Segura.

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