domingo, 24 de agosto de 2008

ECSTASY: Uma geração abalada

Protegida sob o mito de inofensiva, tolerada pela polícia e ignorada pelos pais, uma droga cada vez mais popular entre jovens gaúchos de classe média e alta se transformou em um fenômeno social de conseqüências ainda imprevisíveis. Na mesma cadência acelerada das batidas de música eletrônica que embalam seu uso, o ecstasy molda novos padrões de tráfico e ameaça com prejuízos irreversíveis o cérebro dos usuários.

Se há menos de uma década os comprimidos importados da Europa tinham acesso restrito, hoje as chamadas balas são vendidas e consumidas sem qualquer constrangimento. O território livre são as raves, como Zero Hora constatou na noite de 9 de agosto, em uma festa para 8,2 mil pessoas em uma fazenda na Grande Porto Alegre (leia nas páginas seguintes) – uma das maiores já realizadas no Estado. Apesar dos apelos dos organizadores contra o uso, divulgado no site da festa, a associação entre raves e ecstasy em eventos do gênero é tão estreita que os comprimidos são vendidos até por cambistas.

Atentos à oportunidade de lucro, apresentam um kit completo: além de ingressos de até R$ 50, oferecem aos jovens bem vestidos ecstasy e pirulitos – doce preferido para conter o ranger de dentes, um dos efeitos colaterais da droga. Adquirido por preços entre R$ 35 e R$ 50, cada comprimido gera efeito durante quatro a oito horas e serve de combustível para as raves, que começam nas noites de sábado e se estendem até as tardes de domingo.

A legião de súditos da bala é facilmente identificável por acessórios que parecem uniformizá-los: embalados pela pílula que provoca sensação de euforia, dançam freneticamente horas a fio ao som de música techno, usam óculos escuros à noite (para esconder a dilatação das pupilas), com pirulitos na boca e garrafinhas de água à mão (para compensar a sensação de boca seca).

O impacto do consumo regular ainda carece de investigação, mas os indícios são preocupantes. Segundo estudo realizado em 2007 pelo Centro Médico Acadêmico da Universidade de Amsterdã, publicado na revista In Archives General Psychiatry, da Associação Médica Americana, bastariam três usos de ecstasy ao longo da vida para causar danos à memória. O consumo freqüente provocaria a destruição de neurônios e favoreceria depressão e ataques de pânico. A cada fim de semana, os jovens usuários utilizam, em média, de um a dois comprimidos, mas não é raro encontrar casos de mais de oito doses no mesmo período.

– O uso freqüente acelera a queima de neurônios, traz prejuízos à memória e à atenção. O que ainda não se sabe exatamente é como se dá a neurodegeneração. Esse povo está brincando de cobaia – alerta o psicólogo Murilo Battisti, pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas e membro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas.

A polícia constata o crescimento desse tipo de tráfico e diz se preocupar, mas admite que não o trata como prioridade e que não está preparada para combatê-lo. Sem estrutura para atacar toda a demanda, se volta à repressão de drogas mais diretamente vinculadas à criminalidade, como crack e cocaína. De 2007 até junho de 2008, a apreensão de comprimidos pelo Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc) saltou de 94 para 665. Ainda que a amostra seja pequena, indica a tendência de ascensão, com crescimento de 600%.

– Muitas vezes, o policial nem conhece o ecstasy. É fácil de transportar e os traficantes atuam entre amigos. É uma rede que está crescendo muito e ainda é desconhecida – diz o diretor do Denarc, delegado Álvaro Steigleder Chaves.

Com a sede provocada pela droga, jovens só bebem água durante a noite

Com uma estrutura diferenciada, o tráfico de ecstasy é descentralizado: em vez de grandes cartéis, é alimentado por redes de amigos, que não se consideram traficantes e revendem quantidades reduzidas da droga, muitas vezes trazidas por jovens abastados de viagens ao Exterior. Sem intimidade com esse universo, as tradicionais infiltrações policiais são pouco eficazes, reconhece o delegado Luiz Fernando Martins Oliveira, do Denarc.

– Esse tráfico não é violento, não chama atenção, não tem tiroteio, e geralmente o traficante é da mesma classe que o usuário. Por ser uma droga não associada à violência, passa despercebida, mas é tão perigosa como outras. Um policial infiltrado é facilmente identificado, não conhece os códigos. Já nos infiltramos em raves, mas o tráfico é pulverizado, o ideal seria interceptar antes – avalia Martins, que liderou a prisão de nove pessoas em 2007.

A sensação de liberalidade, aliada à crença de que a droga tem baixo poder ofensivo, favorece a disseminação. Com a sede descomunal provocada pela bala, a maioria só toma água durante a noite e, no dia seguinte, chega em casa bem-disposta e sem cheiro de álcool, para tranqüilidade dos pais desinformados. Em 2002, uma estudante de Psicologia de 23 anos morreu horas depois de consumir a droga em uma festa, em Porto Alegre. O edema teria sido causado por excesso de ingestão de água – o ecstasy eleva a temperatura do corpo a até 42°C.

– Essa é a droga do futuro, vai substituir a cocaína, por exemplo, porque tem muita facilidade de venda, não tem cheiro e é fácil de transportar – imagina o delegado Roger Soares Cardoso, chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal no Estado.

Zero Hora.

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