segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Artigo: A reforma do tribunal do júri no Brasil

Após quase setenta anos em vigor, finalmente alterou-se a legislação processual brasileira em larga escala. O cenário das mais extensas modificações concentrou-se no Tribunal do Júri, com a edição da Lei 11.689, de 9 de junho de 2008, com vacatio legis de sessenta dias. Pretendemos destacar apenas alguns pontos, dentre positivos e negativos, da reforma aprovada e em vias de entrar em vigência.

Durante a fase de formação da culpa, que antecede o juízo de admissibilidade da acusação, prevê-se a instrução por meio da audiência única. Nesse momento processual, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas de acusação e de defesa, nesta ordem, à oitiva de peritos, se for o caso, às acareações, ao reconhecimento de pessoas e coisas, ao interrogatório do réu e, finalmente, aos debates orais das partes. Conforme o caso, profere-se a sentença (art. 411, CPP).

A modificação aglutinadora deveu-se ao incentivo à celeridade processual. Entretanto, na prática, não parecem ter sido ponderados os percalços daí advindos. Considerando-se que as partes podem arrolar até oito testemunhas cada, totalizando dezesseis pessoas a serem ouvidas na audiência, sem contar outras, que podem ingressar como testemunhas do juízo, além de incluir, por vezes, peritos, acareações, reconhecimentos e, finalmente, o interrogatório, a audiência poderá contar com mais de vinte pessoas para a oitiva num único dia.

Assim ocorrendo, por cautela, deve o juiz reservar a pauta do dia todo para essa extensa colheita de depoimentos. Não bastasse, o tempo precisa contemplar, ainda, os debates e julgamento. Instala-se o método de uma audiência por dia de trabalho forense nas Varas Privativas do Júri.

Entretanto, o que se fará caso alguma das testemunhas falte? A condução coercitiva somente poderá ser feita se tiver havido a intimação por mandado, que não é a regra (faz-se, normalmente, pelo correio). No mínimo, espera-se que, feita pelo correio, tenha sido recebida diretamente pela testemunha, o que é raro (em vários casos, muitas dessas intimações terminam entregues a empregados, parentes ou amigos). Afinal, a testemunha está sujeita a multa e a processo por crime de desobediência, determinando a prudência que sua intimação seja pessoal, com a clara advertência de que poderá ser processada caso não compareça. Ainda que se pudesse determinar a condução coercitiva, em grandes cidades essa diligência pode tomar o dia todo. Não podem as partes e as várias testemunhas aguardar, no fórum, indefinidamente.

Se a testemunha faltante advier do rol da acusação, por si só torna-se causa impeditiva para a oitiva de todas as testemunhas de defesa, dos peritos, da realização de acareação, do reconhecimento e do interrogatório. Outra data haverá de ser designada. O juiz reservará outro dia inteiro para tanto? Se o fizer, como ficará sua pauta, já estrangulada por outras audiências marcadas com o mesmo fim, ou seja, que também irão tomar o dia todo? Somente a prática irá demonstrar como se dará a criatividade de cada magistrado para contornar essa idéia legislativa de celeridade, hoje transformada em lei. Parece-nos, no entanto, não haver outra solução senão começar, com o tempo, a se dar a quebra da audiência una, por inexistir outro método razoável para colher a prova. O importante é que nenhuma testemunha deixe de ser ouvida por conta disso. A lei, portanto, não conseguirá resolver os percalços materiais e a insuficiência de pessoal do Poder Judiciário.

Outro ponto crucial da reforma é a eliminação do libelo. Anteriormente, transitada em julgado a decisão de pronúncia, os autos eram encaminhados ao Ministério Público para a confecção do libelo-crime acusatório. Consistia de peça articulada, onde constaria a imputação, filtrada pela pronúncia, em formato de artigos. Pretendia-se que o órgão acusatório deixasse bem claro o conteúdo das teses a sustentar em plenário, vinculando-se a elas, sem surpreender a defesa. Exemplificando: inserindo-se o réu “A”, no libelo, como co-autor, não poderia, em plenário, o promotor sustentar ser ele partícipe do crime.

Sob a alegação de que o libelo era peça geradora de muitas nulidades, terminou fulminado. Criou-se, entretanto, um paradoxo. A Lei 11.689/08, ao mesmo tempo em que fixa a pronúncia como contorno limitativo da acusação em plenário (art. 476, caput, CPP), pretende seja essa decisão judicial o mais concisa possível, “limitando-se” somente à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação (art. 413, § 1º, CPP). Ora, extinto o libelo, que serviria de fronteira para a imputação, substituído pela decisão de pronúncia, não se pode exigir que esta seja concisa e supérflua. Ao contrário, o magistrado necessita fundamentar detalhadamente certos aspectos da decisão que julga admissível a imputação. Exemplificando: havendo concurso de pessoas, torna-se curial que haja a delimitação, na pronúncia, de quem atuou como autor, ou co-autor, e quem agiu como partícipe. Outro aspecto, ainda com relação à pronúncia, diz respeito à necessidade de serem analisadas e, se for o caso, rechaçadas as teses levantadas pela defesa (por ex.: absolvição sumária, por legítima defesa). Não pode ater-se o magistrado unicamente ao cenário da materialidade e dos indícios suficientes de autoria, pois deixaria de fundamentar, como determina a Constituição Federal, a importante decisão acolhedora da acusação para levar o caso a julgamento pelo Tribunal do Júri.

Pensamos que o equilíbrio deverá imperar e o juiz não se furtará a motivar convenientemente a decisão de pronúncia, inclusive pelo relevante aspecto de ser ela o contorno limitativo da acusação em plenário.

Outros pontos, que pretendemos apenas enumerar, constituirão palco de inúmeros debates doutrinários e jurisprudenciais: a) não há mais quesito obrigatório sobre atenuantes, além de se poder considerar que tanto as atenuantes como as agravantes teriam condições de acolhimento diretamente pelo juiz presidente, sem passar pelo crivo do Júri, com o que não podemos concordar; b) as decisões de absolvição sumária e impronúncia passam a ser impugnadas por apelação, o que é correto, pois são decisões terminativas; c) eliminou-se o protesto por novo júri, aspecto positivo, pois era recurso vetusto e dissociado da atual realidade brasileira; d) há outras causas que proporcionam a absolvição sumária, o que também é correto, embora ainda se mantenha a decisão de impronúncia, a lançar o réu num limbo jurídico (não foi nem pronunciado nem absolvido); e) não há mais recurso de ofício com relação à absolvição sumária; f) institui-se multa atualizada para o jurado que, intimado, deixa de comparecer à sessão de julgamento, o que já era esperado há muito tempo; g) há, agora, serviços alternativos para o cidadão que se recusar a servir no Júri, por objeção de consciência, embora não se tenha especificado como tal serviço se dará; h) dificultou-se a separação do julgamento de co-autores e partícipes, determinando que, havendo a cisão, seja primeiramente julgado o autor do fato, elementos que podem ferir o princípio constitucional da plenitude de defesa; i) o relatório do juiz passa a ser feito por escrito e entregue aos jurados, o que é construtivo; j) a leitura de peças foi consideravelmente cerceada, algo que também é positivo, pois os julgamentos necessitam ser objetivos e concentrados; l) oficializou-se o direito ao aparte, em sintonia, pois, com a tradição do júri no Brasil; m) proibiu-se o uso de algemas no réu, como regra, medida harmônica à dignidade da pessoa humana; n) proibiu-se menção à pronúncia ou decisão equivalente, ao uso de algemas, ao silêncio ou à falta de interrogatório do réu, sob pena de nulidade, algo que será, certamente, foco de tensões e desatinos; o) o questionário ganha novo formato e a mais inovadora alteração diz respeito ao quesito único para todas as teses de defesa: “o jurado absolve o acusado?”; p) preserva-se o sigilo das votações, não mais ocorrendo a divulgação do quorum completo; encerra-se a apuração ao ser atingido o quarto voto; q) admite-se, como jurado, qualquer pessoa com mais de dezoito anos, o que não nos pareceu adequado, já que a idade para ingressar na magistratura togada, após a Emenda Constitucional 45/04, elevou-se.

Essas são algumas das alterações produzidas no procedimento e na composição do Tribunal do Júri no Brasil. Muitas são positivas, outras, entretanto, soam-nos negativas. Porém, algo foi feito para contornar as várias décadas sem qualquer modificação da legislação processual penal. O tempo nos irá ditar se mais houve acerto que erro.

Guilherme de Souza Nucci
Livre-docente em Direito Penal pela PUCSP, doutor e mestre em Processo Penal pela PUCSP e juiz de Direito em São Paulo

Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008

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