quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Artigo: Razoabilidade punitiva e a garantia do devido processo legal

No caso do atentado violento ao pudor, mesmo que se tome co9mo certa a aplicação da pena corporal mínima, esta será de seis anos e reclusão a ser cumprida em regime fechado. Ora, uma tal pena é exatamente igual a que se cominaria a um réu primário e sem antecedentes se tivesse praticado um homicídio simples ou um estupro, delitos, convenha-se, bem mais graves que o retratado no artigo 214 do C. Penal.

Comparando o estupro e o atentado violento ao pudor, o eminente prof. Damásio de Jesus, no seu "Novas questões criminais", ao criticar o tratamento punitivo paritário, assinala que "esses delitos, entretanto, são estruturalmente diferentes, a exigir sanções quantitativamente diversas". E arremata: "A gravidade objetivo do fatos não é a mesma. Por isso as penas não poderiam ser abstratamente iguais" (São Paulo, ed. Saraiva 1993, pp. 102/103). Mais incisivo, o já citado Alberto Silva Franco sublinha que isto reflete "um regime de incoerências e ilogicidades" ("Crimes hediondos", ob,cit., p. 190).

Com estrema ironia, mas nem por isso menos acetado, apresenta-se o comentário do ex-ministro da Justiça Saulo Ramos, que em artigo entitulado "Mata, mas não beija!", demonstrou que o homicídio compensa, mas não o atentado violento ao pudor que pode ocasionar penas muito mais altas e com o regime fechado sem possibilidade de progressão. S. Exa., com o brilho que lhe é peculiar, pôs a nu as iniquidades que a Lei dos Crimes Hediondos enseja no campo das penas (cf. "Folha de S.Paulo", ed. 4/11/90, p. A-3).

Ora bem, se assim é - e não há quem divirja -, deve o juiz comportar-se como uma espécie de "autônomo da subsunção" e aplicar uma sanção iníqua? Ou pode e deve, como propugna Zaffaroni, "exercer un control mínimo de racionalidad, sin perjuicio del poder amplio que tiene el legislador" (Revista de Jurisprudência Argentina nº 5.485, apud: Sentença proferida pela Juíza de Direito Maria Lúcia Karan em 21 de junho de 1988 na 38º Vara Criminal da cidade do Rio de Janeiro (RJ), proc. Nº 2.415).

Sem qualquer arranhão ao princípio da tripartição dos poderes e atento a que os juízes e, tampouco os tribunais, não são autômatos da subsunção, dando-se vida à garantia constitucional do devido processo legal na sua acepção material, é possível evitar-se e corrigir-se a injustiça. Na esteira da precisa lição do prof. E procurador da República Carlos Roberto de Siqueira Castro, é forçoso observar que "o papel da cláusula due process of law, considerada sob o prisma isonômico, é justamente o de impedir o abuso do poder normativo governamental, isto em todas a suas exteriorizações, de maneira a repelir os males da 'irrazoabilidade' e da 'irracionalidade', ou seja, do destempero das instituições governativas, de que não está livre a atividade de criação ou de concreção das regras jurídicas nas gigantescas burocracias contemporâneas" ("O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil", Rio de Janeiro, ed. Forense 1989, p.160).

Dissertando sobre o devido processo legal, como fundamento para permitir ao Judiciário o controle do regular exercício do Poder Legislativo, a renomada Profª Ada Pellegrini Grinover acentua: "Malgrado o nítido sentido processual que à cláusula se imprima, em sua tradição histórica, foi-se impondo um conceito substantivo de due process of law, emergente do amplo significa por ela subsumido, quando foi reconduzida a um critério de razoabilidade (reasonableness)". (In: "As garantias constitucionais do direito de ação", São Paulo, ed. RT, 1973, p. 35).

Diferente não é o magistério do prof. Rogério Lauria Tucci para quem, num denominado Estado de Direito, o devido processo legal "determina a imperiosidade" de: "a) Elaboração correta e regular da lei, bem como de sua razoabilidade, senso de justiça e enquadramento nas preceituações constitucionais (substantive due process of law, segundo o desdobramento da concepção norte-americana)". In: "Constituição de 1988 e processo", São Paulo, ed. Saraiva, 1989, p. 15),

Mais recentemente, o ilustre Prof Nelson Nery Jr., peremptoriamente, sentencia que toda lei irrazoável "é contrária ao direito e deve ser controlada pelo Poder Judiciário"

("Princípio do processo civil na Constituição Federal ", SP, ed. RT, 1993, p. 34).

Pois bem. Quando a Lei dos Crimes Hediondos acolheu em seu bojo situações que, em virtude de dessemelhança, mereceriam tratamento jurídico singularizado, isto é, diferenciado, outra coisa não fez senão consagrar a irrazoabilidade, a iniquidade ou, numa palavra, a suma injustiça! Não é à toa, como já anotado, que Alberto Silva Franco sublinha que isto reflete "um regime de incoerências e ilogicidades" ("Crimes hediondos", ob., cit.,p. 190).

Daí porque, ferindo a um só tempo as garantia da individualização da pena e do "substantive due process of law" (CF, art. 5º, incisos LXVI e LIV) representada pelo estabelecimento de uma comissão punitiva, abstratamente considerada, irracional, ilógica e arbitrária, o art. 6º da Lei dos Crimes Hediondos, ao menos no que tange à sanção estabelecida para o atentado violento ao pudor, apresenta-se como inconstitucional e, por essa razão, não pode ser aplicado.

Sobre o tema, para finalizar, o eminente Juiz Federal Carlos David Aarão Reis, realçando que o tratamento punitivo partidário entre o estupro e o atentado violento ao pudor atenta contra o princípio da isonomia, pois este implica em tratamento desigual para os casos desiguais, aponta a inconstitucionalidade do art. 6º, da Lei nº 8.072/90 no tocante às penas estabelecidas para o atentado violento ao pudor.

Dessa forma, o ilustre magistrado conclui: "… no caso do art. 214 do mesmo Código, a identidade de tratamento com o tipo diverso do art. 213 implicou em contradição axiológica ou quebra do sistema, vulnerando o princípio da igualdade. Inconstitucional nessa parte, o art. 6º da Lei 8.072/90, vige o art. 214 do CP com sua redação original, no caput, acompanhado do parágrafo único acrescido pela Lei 8.069/90 (…)". RT 698/287, "Crimes hediondos e o Estatuto da Criança e do Adolescente".

Como se percebe, a inaplicação da majoração imposta pelo art. 6º da Lei dos Crimes Hediondos é imperiosa, pois, além de inconstitucional, representa a consagração de inominável injustiça. Dessa forma, deve prevalecer o Estatuto da Criança e do Adolescente com a aplicação do parágrafo único introduzido ao art. 214 do Código Penal.

Alberto Zacharias Toron


TORON, Alberto Zacharias. Razoabilidade punitiva e a garantia do devido processo legal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.18, p. 07, jul. 1994.

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