sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Artigo: O tratamento da prova ilícita na reforma processual penal

Foram sancionadas, recentemente, as Leis ns. 11.689 e 11.690, que integram a reforma processual penal.

Muitas foram as inovações introduzidas, merecendo destaque o tratamento conferido à prova ilícita, objeto da Lei n. 11.690, de 9 de junho de 2008, antes referida, oriunda do Projeto de Lei n. 4.205/2001.

Nesse particular, desde o advento da Constituição Federal de 1988, a matéria reclamava disciplina na legislação ordinária. O art. 5º, LVI, do texto constitucional estabeleceu que as provas obtidas por meios ilícitos são inadmissíveis no processo. Contudo, muitas questões relativas ao tema permaneciam sem a necessária resposta normativa.

O primeiro aspecto positivo da lei em foco, que deu nova redação ao art. 157 do Código de Processo Penal, foi a definição de prova ilícita. No Projeto de Lei n. 4.205/2001, em consonância com o entendimento sustentado pela doutrina processual penal mais abalizada(1), conceituou-se a prova ilícita como aquela obtida com violação a princípios ou normas constitucionais. Na Lei n. 11.690, esse conceito foi modificado para incluir também as provas obtidas com infringência a normas legais, valendo recordar que, nesse caso, está-se tratando de vedações à prova postas por normas de natureza material.

Tal definição situa a regra de inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos no âmbito do devido processo legal, que não permite acolher ou tolerar a idéia de produção de provas com violações a direitos fundamentais. Sob esse aspecto, fica firmada a opção do ordenamento brasileiro por um processo penal ético.

Importante destacar que a norma constitucional, repetida em sua dicção no novo art. 157 do diploma processual penal, trata da prova ilícita no âmbito da admissibilidade das provas, afastando toda e qualquer possibilidade de sua produção ou ingresso nos autos do processo. Contudo, atenta à realidade, a Lei n. 11.690 cuidou também da conseqüência jurídica do ingresso de tais provas nos autos, estabelecendo como sanção processual, na esteira do que já vinha preconizando a doutrina(2), a sua ineficácia, com conseqüente impossibilidade de valoração e desentranhamento(3).

Era necessário, ainda, tratar da destinação das provas ilícitas desentranhadas. Assim, o novo art. 157, em seu § 3º, dispôs que tais provas serão inutilizadas por decisão judicial, uma vez preclusa a decisão de desentranhamento, facultando-se às partes acompanhar o incidente. Sobre esse aspecto, deve-se frisar que, originariamente, o Projeto de Lei n. 4.205/2001 determinava o arquivamento sigiloso do material desentranhado em cartório, o que se mostrava inapropriado, já que a prova ilícita jamais poderia ser utilizada no processo. Sendo assim, não havia qualquer razão para o seu arquivamento, exceto se a produção da prova ilícita configurasse crime, de modo a ensejar investigação contra o agente. Aliás, o Código de Processo Penal português possui disposição expressa a esse respeito, em seu art. 126(4), n. 4. Sustentamos, por ocasião dos debates sobre o citado Projeto de Lei, que, ressalvada a hipótese de investigação do delito configurado com a obtenção ou produção de prova ilícita, melhor seria a destruição das referidas provas, mediante procedimento próprio. A Lei n. 11.690, entretanto, não adotou a dicção “destruição”, mas sim “inutilização” da prova ilícita(5). De outra parte, não se pode ignorar a hipótese em que a prova foi obtida ilicitamente, mas o material dela resultante pertencer a terceiros, que poderão ter interesse em sua entrega ou restituição, v.g., no caso de apreensão de documentos, correspondências ou objetos mediante violação de domicílio. Nesse caso, efetivamente não seria caso de destruição, nem de inutilização, mas de desentranhamento da prova obtida ilicitamente com entrega ao terceiro que é seu titular.

Saliente-se que o § 3º do art. 157 alude à preclusão da decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível. Mencionada matéria estava diretamente relacionada à nova disciplina dos recursos, objeto de outro Projeto de Lei, de n. 4.206/2001(6). Nele foi previsto, no art. 583, VI, o cabimento do agravo contra decisões que declarassem a prova lícita ou ilícita. Além disso, restava estabelecido que, em regra, esse agravo seria retido, apresentando portanto somente efeito devolutivo. Para as hipóteses de agravo de instrumento, consignadas na nova redação do art. 583, caput, poderia ser conferido efeito suspensivo diante da relevância da fundamentação do pedido e se da decisão pudesse resultar lesão grave ou de difícil reparação. A previsão do agravo, na esfera processual penal, foi bastante criticada e o fato é que o Projeto relativo aos recursos ainda não foi aprovado.

Ou seja, na disciplina vigente, não há previsão de recurso para a decisão que reconhecer — ou não — a ilicitude da prova e determinar o seu desentranhamento(7). Para a defesa, possível é o manejo do habeas corpus, pelos inegáveis efeitos produzidos pela prova ilícita na persecução penal em relação ao direito de liberdade. Para a acusação, restaria a possibilidade de impetrar mandado de segurança, com suporte no direito à prova, dentro do prazo de 120 dias.

É de se indagar ainda se os elementos probatórios colhidos ilicitamente durante a investigação também ficarão submetidos a essa disciplina. Nesse ponto, deve-se observar que, no último dia 20, foi publicada a Lei n. 11.719, que alterou dispositivos do Código de Processo Penal relativos a procedimentos. O Projeto de Lei n. 4207/2001, que deu origem ao citado diploma legal, estabeleceu a apresentação de resposta preliminar, pela defesa, antes do recebimento da denúncia. Na Lei n. 11.719, embora o rigor técnico do Projeto não tenha prevalecido, a interpretação sistemática dos arts. 396, 397 e 399, conduz à conclusão da manutenção da resposta à acusação, antes do recebimento da peça vestibular. Assim sendo, caso a denúncia venha a ser ofertada com base em elementos probatórios colhidos ilicitamente, caberá à defesa apontar o vício na resposta preliminar. A partir de então, a matéria será regida pelo novo art. 157, com a prolação de decisão sobre a inadmissibilidade — ou não — desses elementos e conseqüente desentranhamento. Reconhecida a inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos, se não houver outros elementos suficientes para embasar a acusação, a denúncia deverá ser rejeitada.

Outro ponto bastante louvável na Lei n. 11.690 de 2008 foi a disciplina da prova derivada daquela obtida ilicitamente, estabelecendo a regra de inadmissibilidade das provas derivadas das ilícitas (§ 1º do art. 157), construída pela teoria dos frutos da árvore envenenada. Além disso, foram adotadas duas exceções a essa regra, construídas pela jurisprudência norte-americana: a da descoberta inevitável (inevitable discovery) e aquela da fonte independente (independent source), definindo-se, inclusive, o que se entende como tal (“...aquela que por si só, segundo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova”)(8).

O risco na adoção de tais exceções, que já era apontado desde os debates sobre o Projeto de Lei n. 4.205, de 2001, é um certo estímulo à utilização de expedientes ilícitos para a obtenção de provas que, de alguma forma, poderão vir a ser aproveitadas. A solução preconizada, nesse aspecto, como freio para tais práticas seria a efetiva punição, no campo penal, da conduta do agente que obtém a prova por meio ilícito, o que depende não só da sua tipicidade, por força do princípio da legalidade, como de efetivo empenho nesse sentido.

Por fim, a grande crítica à Lei n. 11.690, no que tange às provas ilícitas, diz respeito ao veto presidencial que recaiu sobre o § 4º do art. 157(9), que estabelecia que o juiz que conhecesse do conteúdo da prova declarada ilícita não poderia proferir a sentença ou o acórdão. Das razões do veto extrai-se, entre outros aspectos, uma vez mais, a valorização da celeridade processual em detrimento da qualidade da prestação jurisdicional e do respeito aos direitos fundamentais. Ao permitir que o juiz que teve contato com a prova declarada ilícita venha a proferir a sentença ou o acórdão, os avanços alcançados por meio da Lei n. 11.690 ficam minimizados, porque a norma do § 4º do art. 157 foi o mecanismo mais eficiente encontrado para realmente impedir que o julgador forme seu convencimento com base na prova obtida ilicitamente. Desse modo, o desentranhamento das provas ilícitas e daquelas dela derivadas pouca valia terá sobre a formação da convicção do julgador, já afetada pelo contato com aquelas provas, ainda que tal convencimento não seja exteriorizado, de forma expressa, na fundamentação de sua decisão.

NOTAS

(1) Conforme GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As Nulidades no Processo Penal. 9ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 150.

(2) Nessa esteira, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho, vinham sustentando que as provas ilícitas são tidas pela Constituição Federal como “não-provas”, ou seja, inexistentes juridicamente, já que são inadmissíveis, daí decorrendo sua total ineficácia (As Nulidades no Processo Penal, cit., p. 160).

(3) É de recordar que o Código de Processo Militar, em seu art. 375, já estabelecia o desentranhamento dos autos das correspondências obtidas por meios criminosos. A esse respeito, Antonio Scarance Fernandes, na obra Processo Penal Constitucional, observava que, no Código de Processo Penal, não havia norma a respeito do desentranhamento da prova ilícita, aduzindo que, por interpretação extensiva, deveria ter aplicação o art. 145, IV daquele diploma que tratava do desentranhamento de documento considerado falso (FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 98).

(4) “4. Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.”

(5) O termo “inutilizzabilità” é adotado no Direito italiano para indicar o vício que pode atingir um ato ou documento e também o regime jurídico ao qual o ato viciado fica submetido, ou seja, não poder constituir fundamento de uma decisão judicial (conforme TONINI, Paolo. La Prova Penale.3ª ed., Pádua: CEDAM, 1999, p. 36). A inutilização da prova declarada inadmissível referida no § 3º do art. 157, com a redação da Lei n. 11.690/2008, entretanto, apresenta sentido diverso, tratando-se, em nosso entendimento, de inutilização material. Não constitui, pois, sanção processual.

(6) Tal Projeto foi retirado de pauta.

(7) Referida decisão é interlocutória simples, pois resolve questão incidente de natureza processual (v. a respeito, GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Recursos no Processo Penal. 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 59).

(8) Da doutrina, porém, extrai-se que as exceções à inadmissibilidade das provas ilícitas derivadas, adotadas na nova redação do art. 157, §§ 1º e 2º, não foram bem definidas, sob o prisma técnico-jurídico, uma vez que a fonte independente apresenta-se quando não há vinculação de causa e efeito entre a prova ilícita e a derivada. A descoberta inevitável, por sua vez, configura-se quando for possível chegar-se à prova derivada da ilícita por outro modo (v. a respeito, GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance e GOMES FILHO, Antonio Magalhães, As Nulidades no Processo Penal, cit.,p. 154). Deve-se observar ainda sobre o tema que, originariamente, a mesma norma constante do Projeto de Lei n. 4.205/2001 (art. 157, § 1º), distinguia, de forma precisa e técnica, as duas hipóteses: “São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, quando evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, e quando as derivadas não pudessem ser obtidas senão por meio das primeiras.” Não é demais recordar, porém, que a Suprema Corte Americana já reconheceu que a fonte independente é analiticamente semelhante à descoberta inevitável, pois ambas permitem à acusação não ficar em posição desvantajosa em virtude de erros ou desvios de conduta praticados pela polícia anteriormente (ISRAEL, Jerold H.; LaFAVE Wayne R. Criminal Procedure. Constitucional Limitations. 5ª ed., St. Paul: West Publishing Co., 1993, p. 292).

(9) No Projeto de Lei n. 4.205/2001 a mencionada norma encontrava-se no § 3º do art. 157.

Maria Elizabeth Queijo
Mestre e doutora em Processo Penal pela Faculdade de Direito da USP; professora da Faculdade de Direito da Unimesp e advogada


Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008

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