segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Artigo: O fim do protesto por novo júri e o julgamento pela mídia

As Leis nº 11.690 e nº 11.689 trouxeram importantes alterações ao Código de Processo Penal, tornando-o em boa parte mais democrático.

Muitas novidades merecem elogios, como a justa atenção dispensada à vítima, que passa a ser comunicada dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos (art. 201, § 2º). Igualmente, o fato das partes formularem as suas perguntas, durante a audiência, diretamente às testemunhas (art. 212), a simplificação dos quesitos no Tribunal do Júri (art. 483) etc.

Não obstante várias as louváveis mudanças, a extinção do protesto por novo Júri não nos pareceu acertada.

Sempre nutrimos simpatia por esse instituto que estava presente em nosso ordenamento desde o Código de Processo Penal do Império de 1832. A sua inspiração é inglesa, sendo cabível, àquela época, nas condenações a (a) degredo ou desterro por cinco anos ou mais; (b) galés ou prisão por três anos ou mais; e (c) à morte. Logo depois, em 1841, como explica Florêncio de Abreu(1) foi ele restringido somente às condenações à morte ou a galés perpétuas.

Embora abolidas as penas perpétuas e de morte, o protesto por novo Júri, em nossa República, foi mantido na Justiça Federal (Consolidação das Leis Penais), bem como nos Códigos de Processo Penal doDistrito Federal e de Alagoas, para as penas de 30 anos. Em Pernambuco, para as iguais ou superiores a 24 anos; em Sergipe, para as condenações iguais ou superiores a 20 anos, desde que havidas por maioria de votos; já em Minas Gerais e Rio de Janeiro admitia-se o protesto mesmo nas condenações unânimes. No Maranhão, cabia o protesto para todas as condenações iguais ou superiores a 20 anos e, às superiores a 10 anos, somente se a condenação fosse por maioria. Em Santa Catarina, cabia o protesto para as condenações por maioria de votos a 12 anos e, na Bahia, superiores a 10 anos; no Paraná, se a condenação fosse igual ou superior a 10 anos e, para as superiores a 6 anos quando o veredicto não reunisse dois terços dos jurados, consoante ensina Epínola Filho(2).

No Decreto nº 167 de 1938 foi o protesto por novo Júri mantido para as condenações iguais ou superiores a 24 anos, unânimes ou não, afirmando Magarinos Torres(3), à época, que “não cabem aqui louvores á nova lei pela conservação da antigualha, em sua fórma primitiva”, tendo sido, até há pouco, preservado no Código de Processo Penal de 1941 para as condenações a 20 anos ou mais, independentemente do número de votos.

É verdade que esse recurso, durante sua longeva vida, foi alvo de críticas. Borges da Rosa, por exemplo, afirmou que o legislador manteve a tradição sem realizar um exame crítico, “pois que, se o fizesse, provavelmente não adotaria o referido recurso”, não fazendo sentido haver um duplo julgamento já que “uma decisão do Júri, clara, completa e concordante, deve, em regra, ser irrevogável, desde que não houver vício ou preterição de fórmulas no processo”(4).

Vozes a seu favor também ecoaram, sendo o protesto defendido por Florêncio de Abreu(5). Aliás, Pimenta Bueno ao deduzir os argumentos favoráveis ao protesto por novo Júri, dizia, em 1922, que mesmo sendo o Júri imparcial, “póde a eloquencia do accusador, impressões desfavoráveis ao reo, o horror do crime por si só, uma convicção momentânea, um erro funesto, seduzir ou desvairar o espírito dos jurados; e que penas tão graves como a de morte, ou privação perpetua tão dolorosa da liberdade não devem ter execução sem uma revisão, embora as formulas tenham sido guardadas, e que essa revisão não póde ser outra sinão a de um novo jury”(6).

E após 176 anos de existência, a nossa tradição foi, enfim, abolida, e por quê?

Comentando a exposição de motivos do Projeto de Reforma do Júri recém-aprovado, René Ariel Dotti defendeu a extinção do recurso, aduzindo ser forçoso reconhecer que a “estratégia” de quase sempre aplicar a pena abaixo de 20 anos compromete a aplicação da pena justa, exclusivamente para “fugir do ônus de um novo julgamento com a fatigante reencenação da vida e da morte dos personagens do fato delituoso”, bem como “evitar os riscos de uma absolvição do réu que já foi condenado”(7), como aconteceu, há pouco, no famoso e triste assassinato da irmã Dorothy Stang, defensora da floresta amazônica no Pará, tendo um fazendeiro, condenado a mais de 20 anos pela acusação de ser o mandante do crime, sido absolvido em um segundo Júri.

Poder-se-ia, assim, argumentar que o protesto por novo Júri garantia nada mais do que o privilégio do segundo julgamento “errar por último”.

Ousamos discordar, mesmo porque temos, hoje, uma situação jamais pensada.

Trata-se do julgamento pela mídia, transformando-se os processos criminais em verdadeiros reality shows, novelas da vida real com capítulos diários, havendo forte contaminação da opinião pública de um País inteiro. O julgamento acaba sendo realizado pela sociedade, fora do plenário do Júri...

A absolvição pelo segundo Júri de uma pessoa antes condenada, é, nesse contexto, a maior prova de que a primeira condenação era frágil, por vezes parcial diante do clamor público, demonstrando-se, daí, ser o recurso do protesto por novo Júri muito importante.

Afinal, não se trata de evitar o risco de uma ulterior absolvição; cuida-se de reduzir as chances de uma errônea condenação, sendo o princípio favor libertatis o fundamento de todo Estado Democrático de Direito.

Lembramos, ainda, que ao contrário do que sucede, em regra, nos Estados Unidos e na Inglaterra, exigindo-se unanimidade do Conselho de Sentença(8), atualmente no Brasil não há nenhuma exigência nesse sentido, admitindo-se condenações a altas penas com a diferença de um único voto (quatro a três), o que denota fragilidade na convicção dos jurados.

Ademais, com a abolição do protesto por novo Júri, deparamo-nos com uma grande iniqüidade.

Com efeito, a pessoa condenada pelo juiz singular a 30 anos por extorsão mediante seqüestro com morte (CP, art. 159, § 3º) tem a possibilidade de ver o mérito de sua condenação reexaminado em uma apelação, a qual devolve todo o conhecimento da causa à segunda instância, bastando ser o recurso interposto no prazo legal.

Já agora o condenado à mesma pena pelo Tribunal do Júri, por homicídio qualificado (CP, art. 121, § 2º), ainda que por quatro votos a três, não mais têm a possibilidade de um novo julgamento pelo Júri, a não ser se o Tribunal anular o julgamento em razão de uma nulidade ou entender ter sido a decisão manifestamente contrária à prova dos autos (o que é mais limitado).

São por essas razões que, ao invés do radicalismo de se aniquilar o protesto por novo Júri, entendemos melhor tivesse ele sido mantido, quiçá restringindo-o a condenações iguais ou superiores a 24 anos, como já ocorrera no passado, ou limitando o protesto para as condenações não unânimes a penas altas, como já ocorrera no Sergipe.

Gostaríamos de salientar, para finalizar, consoante sustentávamos em 2001 com apoio em Georges Levasseur, Jorge de Figueiredo Dias(9) e Américo Taipa de Carvalho(10), que “preceitos processuais penais que incidam sobre direitos individuais, como a liberdade, a ampla defesa e o duplo grau de jurisdição, restringindo-os de qualquer maneira em relação à lei processual penal anterior, não devem aplicar-se a processos por fatos ocorridos antes da sua entrada em vigor, abrindo-se exceção, pelos motivos expostos, e nesse estrito âmbito, à regra tempus regit actum”(11). A norma benéfica revogada deve, assim, ser aplicada ultrativamente, sendo este o caso dos arts. 607 e segs. do CPP, isto é, do protesto por novo Júri.

Perdemos uma tradição liberal; aumentaram-se as chances de erro judiciário em tempos que trazem novos desafios ao Júri. Tempos, em que as pessoas são julgadas primeiramente pela mídia, contaminando toda a população, nela se incluindo os jurados, que não precisam motivar a sua decisão.

Um segundo Júri traria maior segurança. Se estivermos errados, o futuro dirá.

Notas

(1) Florêncio de Abreu, Comentários ao Código de Processo Penal, Rio de Janeiro: Forense, vol. V, 1945, p. 3.

(2) Eduardo Espínola Filho, Código de Processo Penal Brasileiro Anotado, 5ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1961, vol. VI, p. 250.

(3) Antonio Eugenio Magarinos Torres, Processo Penal do Júri no Brasil, Rio de Janeiro: Jacintho, 1939, p. 535.

(4) Inocêncio Borges da Rosa, Processo Penal Brasileiro, Porto Alegre: Globo, 1942, vol. IV, p. 44.

(5) Ob. e p. cits.

(6) Pimenta Bueno, Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro, Rio de Janeiro: Jacintho, 1922, p. 249.

(7) René Ariel Dotti, “A Reforma do Procedimento do Júri – Projeto de Lei 4.900, de 1995”, in Tribunal do Júri, coord. Rogério Lauria Tucci, São Paulo, RT, 1999, p. 323.

(8) Unanimidade criticada Pimenta Bueno (ob. cit., p. 193), citando Paley, para quem há, na verdade, uma “unanimidade fictícia, que tem mais de coação do que de moralidade”, mesmo porque “querer que doze indivíduos tirados á sorte d’entre uma multidão se accordem no mesmo parecer sobre pontos duvidosos, e a respeito dos quaes muitas vezes não se possa obter uma verdadeira unanimidade fechando-os em um gabinete até que a privação de todos os recursos reduza-os á forçada concórdia, é disposição mais própria dos séculos bárbaros que das épocas civilizadas”.

(9) Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Lisboa: Aequitas, 1993, pp. 71 e 72.

(10) Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, Coimbra: Coimbra editora, 1990, p. 221.

(11) Roberto Delmanto Junior, As Modalidades de Prisão Preventiva e seu Prazo de Duração, 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, pp. 72 a 76.

Roberto Delmanto Junior
Advogado criminalista e doutor em Direito Processual Penal pela USP

Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008

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