sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Artigo: Lei seca - fiscalização e menos mortes

Depois da lei seca, vigente desde o dia 20 de junho, reduziram-se os acidentes de trânsito em praticamente todo o Brasil - 15,3% só no Estado de São Paulo. As mortes também: 8,8% no Estado de São Paulo e 63% na sua capital. E os custos hospitalares? Economia de R$ 4,5 milhões em um mês, considerando os 30 hospitais estaduais da Região Metropolitana de São Paulo - de um mês para outro caíram os atendimentos drasticamente: de 9.102 para 4.449. A que se deve tanta diminuição?

A crendice popular e, em geral, midiática diz: "Aos rigores da nova lei", "passou a ser crime dirigir com qualquer quantidade de álcool", "antes, só com 0,6 decigrama o motorista era punido", etc. Quantos absurdos, quantas desinformações! As penas previstas na nova lei (nos artigos 165 e 306) são exatamente as mesmas da lei anterior - a lei nova não aumentou as penas nem é mais rigorosa? Não. Ela está sendo "vendida" midiaticamente como mais dura, mas não é. Nisso reside um grande equívoco informativo, que ilude o imaginário popular.

E por que essa lei nova "pegou"? Intensa fiscalização e certeza da punição (isso nada mais é que a infalibilidade da sanção, que já era reivindicada por Beccaria em 1764). O que, então, funciona? É a lei dura, quase nunca aplicada, ou a fiscalização (controle certo)? A resposta é óbvia: fiscalização e infalibilidade da punição. A lei, por mais severa que seja, sem fiscalização (sem controle) não funciona preventivamente (a Lei dos Crimes Hediondos constitui a prova mais contundente disso no território brasileiro).

Sem a nova lei poderiam ter sido reduzidos os índices escabrosos de mortes no Brasil (35 mil por ano). E por que isso não ocorreu antes? Por falta de fiscalização e ausência da certeza da punição. Já existia lei seca antes no nosso país - a tolerância zero já tinha sido aqui implantada pela Lei 11.275/06. O Código de Trânsito Brasileiro, de 1997, era mais tolerante com o motorista embriagado (permitia até 0,6 decigrama de álcool por litro de sangue). Foi a partir de 2006 que essa grande margem de tolerância acabou. E por que a Lei 11.275/06 não "pegou"? Você já sabe a resposta: falta de fiscalização.

A moderna criminologia nos mostra que são a fiscalização e a punição certa que conduzem à mudança de hábitos das pessoas. A conscientização só ocorre quando há percepção de que a regra é "pra valer". Prova disso é a redução dos acidentes, dos atendimentos hospitalares e das mortes. Além disso, a lei nova não "pegou" em algumas capitais, como Porto Velho, Macapá, Palmas, Cuiabá e Campo Grande, que continuam com número de mortes equivalente ao das cidades africanas, consideradas uma calamidade pela Organização das Nações Unidas. Por que não "pegou"? Por total falta de estrutura e ausência de fiscalização.

A lei nova é inconstitucional, como alguns juízes estão reconhecendo em suas liminares? Em parte, sim; em parte, não. Quando ela pune o motorista, embora com penas administrativas, por recusar o exame de sangue ou o bafômetro, é inconstitucional, porque nenhum cidadão brasileiro, por força do artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, é obrigado a se auto-incriminar. Bafômetro, que exige participação ativa do suspeito e intervenção do seu corpo, não é a mesma coisa que mostrar a carteira de habilitação.

O artigo 306 do Código de Trânsito, com a redação dada pela nova lei seca, é inconstitucional? Parcialmente, sim, porque, ao presumir generalizadamente que o motorista com 0,6 decigrama de álcool por litro de sangue (sempre) está embriagado, desconsiderou que as pessoas são diferentes - o álcool produz efeitos diversos em cada sujeito, tudo depende da sua altura, de seu peso, seu sexo, etc. Assim, tratou pessoas desiguais de forma igual, violando o princípio da igualdade, que exige tratar os desiguais desigualmente.

Eliminada do artigo 306 a exigência de 0,6 decigrama de álcool, o crime desaparece? Não. Mas com isso sua redação ficaria idêntica à do artigo 165, que cuida da infração administrativa. E qual seria a diferença entre tais infrações? Aquela, administrativa, é de perigo abstrato - não interessa se o sujeito conduzia o veículo de forma normal ou anormal. Esta é de perigo concreto indeterminado, ou seja, o crime do artigo 306 requer um condutor embriagado mais uma direção anormal, em ziguezague, passar o sinal vermelho, etc. Nisso está a diferença, ainda não captada por algumas autoridades.

A qualidade técnica da nova lei seca é deplorável. A anterior (11.276/06) era melhor, porém, apesar de tudo, a lei nova "pegou", porque a prevenção de acidentes e de mortes no trânsito depende não da gravidade abstrata da sanção, e sim da fiscalização, punição, conscientização (que decorre dos dois fatores anteriores), educação e engenharia (esta última pode proporcionar segurança nas ruas e estradas, assim como nos veículos).

A eficácia, bastante benéfica, da nova lei seca vai durar o tempo que durar a fiscalização, isto é, a mobilização policial. Com o relaxamento dela aumentarão os acidentes e as mortes. E nós já vimos esse filme de 1999 até 19 de junho de 2008.

É uma falácia afirmar ou sugerir que a lei nova seja mais rigorosa que a anterior. Mas, mesmo não sendo mais "dura", como foi capaz de evitar milhares de acidentes e mortes? Simples, ela foi o pretexto para se desencadear a mais intensa fiscalização de trânsito em quase a totalidade do País. Isso é o que vale. A lição a ser difundida é esta: o segredo do sucesso de uma lei está no seu efetivo cumprimento, não no seu rigor formal. Que o legislador brasileiro e alguns setores da mídia aprendam essa lição de uma vez por todas. Seguramente deixariam de fazer ou de dizer bobagens inoculadas no imaginário popular.

Luiz Flávio Gomes, professor doutor em Direito Penal pela
Universidade de Madri, mestre em Direito Penal pela USP,
diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br),
foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001)


Estadão.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog