quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Artigo: Lei de drogas: muitas perguntas, algumas respostas

Introdução

A nova Lei de Tóxicos (Lei n. 11.343/06), ou de Drogas, como tem sido chamada, vigente desde outubro de 2006, já tem a essa altura sido largamente aplicada e dessa aplicação vão surgindo questionamentos a partir de situações antes não imaginadas. Uma das principais fontes dessas questões é a presença, no artigo definidor do crime de tráfico de entorpecentes (art. 33), de um parágrafo (o 4º) que introduz causa de diminuição de pena para o réu que “não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”. Esse dispositivo é causa de uma interminável série de dúvidas e perguntas.

Para mencionar algumas: 1) Trata-se de norma de aplicação retroativa, vale dizer, a crimes praticados antes da vigência da nova lei? 2) Em caso afirmativo, essa aplicação deve ocorrer em combinação com o art. 12 da Lei n. 6368/76, ou com o “caput” do art. 33 da nova lei? 3) O que significa “não se dedicar às atividades criminosas” e “não integrar organização criminosa”? 4) Cuida-se de norma auto-aplicável? 5) A quem incumbe e como fazer prova dessa circunstância? 6) Nos casos já julgados, a quem compete decidir pela eventual aplicação da nova lei?

Note-se que por ora é impossível buscar soluções para essas perguntas na jurisprudência, que, ante a novidade dos temas, ainda não se firmou em nenhuma direção. Mas é viável tentar respondê-las com amparo doutrinário e através de uma interpretação lógico-sistemática do ordenamento legal. Vamos às tentativas:

Perguntas 1 e 2 - Para a primeira indagação vale o que já foi objeto de comentário em outras oportunidades, significando dizer que a regra definida no parágrafo quarto do artigo 33 é aplicável, mas somente em conjunto com o caput do mesmo artigo 33 (conclusão que já contém a resposta da segunda pergunta).

O problema é que este dispositivo, ao descrever o crime de tráfico, cominou penas mínimas maiores do que o fazia o art. 12 da antiga lei. Mas o problema é só aparente. Na realidade, a lei nova redefiniu o delito de tráfico e nessa nova definição incluiu uma causa especial de diminuição de pena, que está e sempre estará a ele acoplada, apenas fazendo sentido quando o juiz optar pela aplicação do caput do art. 33; ocorre que o caput sanciona mais severamente o crime de tráfico e, por força da obrigatória retroatividade da lei penal mais benigna, tal dispositivo deverá ser aplicado quando for caso de reconhecimento da causa de diminuição e a pena, imposta com base no caput e reduzida nos termos do parágrafo quarto, resultar numa quantidade inferior à que redundaria da aplicação do art. 12 da lei revogada.

Mas o que o juiz não poderá é impor a pena cominada pelo art. 12 e sobre ela calcular a redução definida no citado parágrafo quarto da nova lei, pinçando o que de melhor houver para o réu em dois diplomas, um deles já revogado. O crime de tráfico sobre o qual incide a circunstância redutora de pena é aquele definido e apenado segundo o caput do art. 33. A opção, ao contrário, deverá ser por uma das leis, ou, antes disso, por uma das normas definidoras do tráfico, com o que ela trouxer, como acessório, de bom ou de mau.

Claro que a regra a nortear a opção do juiz será a da lei mais benéfica; daí a necessidade de comparar a pena reduzida por conta da lei nova com a pena não reduzida prevista pela lei velha. A combinação de dispositivos de uma e de outra, no entanto, significará criar uma terceira lei, o que não é dado ao intérprete, nem foi, obviamente, o desejo do legislador. Segundo o princípio da retroatividade da norma mais favorável, o juiz deverá optar por uma das normas disponíveis e não combiná-las, posto que a opção por uma excluirá a aplicação da outra; o dever do julgador é aplicar a norma mais benigna, não meia-norma.

Já são encontráveis julgados do Tribunal de Justiça de São Paulo nesses termos. Na apelação n. 01069579.3/9, da Comarca de Itapetininga, acórdão da 14ª Câmara B do 7º Grupo da Seção Criminal, datado de 22 de novembro de 2007, relatado pelo Des. Gilmar Ferraz Garmes, determinou a aplicação do art. 33, caput, combinado com o parágrafo 4º da Lei n. 11.343/06 a réu antes condenado com base no art. 12 da Lei n. 6368/76. E advertiu que

A redução, no entanto, tem o seu limite em um ano e quatro meses de reclusão, pois agora o tipo penal prevê pena mínima básica de cinco anos (artigo 33). O limite, assim, é o resultado da redução máxima de 2/3 sobre a pena mínima prevista de cinco anos de reclusão. Se aplicássemos a redução máxima de 2/3 sobre a pena da lei anterior, acarretaria uma fixação aquém do que pretendeu o legislador.

Também entendendo que o parágrafo 4º somente é aplicável aos crimes apenados segundo o caput do art. 33 da Lei de Drogas, a 9ª Câmara do 5º Grupo decidiu, no julgamento do agravo em execução n. 01088921.3/0, de São Paulo, que “o § 4º do art. 33 do novel diploma legal prevê que as penas cominadas aos delitos definidos no caput e § 1º do mesmo artigo poderão ser reduzidas de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços) [...]”. O acórdão, de 19 de setembro de 2007, relatado pelo Des. Penteado Navarro, ainda acrescenta que

às infrações penais cometidas na vigência da Lei n. 6368/76, ou seja, anteriores ao advento da mencionada Lei n. 22.343, não pode se aplicada a causa de redução prevista no § 4º do art. 33 da novel legislação, pela regra da irretroatividade da lei mais severa [...]”, deixando entrever que o dispositivo do § 4º somente pode ser aplicado em combinação com o do caput e do § 1º do art. 33 e não isoladamente.

No mesmo sentido o julgamento da apelação n. 01063143.3/6, de Cubatão, em 26 de outubro de 2007, pela 13ª Câmara B do 7º Grupo da Seção Criminal, relatado pelo Des. Jaime Ferreira Menino, que até mesmo buscou novo argumento, centrado no princípio da legalidade, para consignar que

Não cabe fazer a incidência da redução posta na nova lei, sobre a pena fixada conforme a anterior, isso a reduziria a um ano, o que não é previsto em qualquer desses dois diplomas legislados e infringiria o princípio da reserva legal, pois não há pena sem prévia cominação na lei [...].

E ainda o acórdão de lavra do Des. Louri Barbiero, da 8ª Câmara do 4º Grupo da Seção Criminal, proferido em 16 de outubro de 2007, no julgamento do agravo em execução n. 01105176.3/0, da Comarca de São Paulo, a frisar que “[...] não se pode fazer incidir aos fatos pretéritos apenas a inovação benéfica da nova legislação, afastada a parte prejudicial, no caso, o preceito secundário do artigo 33. Ao Juiz não cabe legislar, criando uma nova lei.” Segue em idêntica direção acórdão da mesma Câmara, datado de 30 de outubro de 2007, relatado pelo Des. Souza Lourenço, a julgar a apelação n. 886853.3/5, da Comarca de Orlândia.

A questão entretanto ainda está longe de ser pacífica, sendo possível encontrar também julgados admitindo a incidência do § 4º do art. 33 à pena imposta segundo o art. 12, caput, da Lei n. 6368/76.

O tema da retroatividade da lei mais benéfica também não escapou à clarividência de Nélson Hungria, que deixou clara sua posição no sentido da impossibilidade desse tipo de combinações. Assim é que para ele “[...] não podem ser entrosados os dispositivos mais favoráveis da lex nova com as da lei antiga, pois, de outro modo, estaria o juiz arvorado em legislador, formando uma terceira lei, dissonante, no seu hibridismo, de qualquer das leis em jogo.” [1]

De tudo decorre que a resposta mais adequada à primeira e à segunda questões é: sim, a causa de diminuição de pena prevista no parágrafo quarto do artigo 33 da Lei n. 11.343/06 é aplicável retroativamente a crimes cometidos anteriormente à data de sua vigência; essa aplicação deve ser feita com base na pena imposta pelo caput da mencionada lei; desde que desse cálculo (a redução do § 4º do art. 33 sobre a pena do caput) resulte uma pena inferior ao que resultaria da incidência do artigo 12, caput, da Lei n. 6368.76 (sem redução alguma), a opção do julgador deve ser pela nova lei; em caso contrário, pela velha.

Pergunta 3 – A expressão “não se dedicar às atividades criminosas” encerra dois problemas, um deles curiosamente de natureza gramatical.

Em primeiro lugar, o conteúdo dessa assertiva é vago e impreciso. Vago porque amplo demais, abrangendo toda e qualquer “atividade criminosa”. Onde começa algo que pode ser tido por “atividade criminosa”? Significa a execução completa de crimes, a simples tentativa, ou alcança também os atos preparatórios, já que foi utilizada a expressão “atividade criminosa” e não o termo crime? Ou, pelo contrário, será “atividade criminosa” sinônimo de crime? Aqui já se vê que a imprecisão é decorrente da vagueza.

De toda sorte, parece certo que “atividade criminosa”, se puder ser considerada expressão equivalente a crime, é algo que, no universo da tipicidade penal, exclui apenas a prática de contravenções, de sua abrangência não escapando nem mesmo os delitos culposos. Seria viável, assim, a princípio, considerar alcançadas pelo dispositivo atividades que nem de perto se relacionam com a traficância, encontráveis ao longo dos inúmeros dispositivos tipificadores existentes no Código Penal e na legislação extravagante, esta hoje, vista na sua somatória, quase tão extensa quanto aquele. E por força dessa interpretação, quaisquer atividades criminosas impediriam o reconhecimento da causa de redução de pena.

Além disso, “atividades criminosas” parecem sugerir uma certa constância por parte do delinqüente, inaplicável a quem tenha praticado um só crime, já que o termo atividade é indicativo de um estado permanente. Mas, afinal, de quantos crimes se necessita para considerar que alguém está em atividade?

Outra possibilidade que se coloca é que a palavra atividade, se vista no seu sentido mais estrito, leva o dispositivo legal a excluir desse leque os crimes consistentes em condutas omissivas. Atividade representa movimento e os crimes, como é sabido, configuram condutas às vezes comissivas, outras omissivas. Seria razoável afastar do rol das condutas impeditivas do benefício a de, por exemplo, consentir que terceira pessoa se utilize “para o tráfico de drogas” de local ou bem “de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância”, como o art. 33, § 1º, III, descreve uma modalidade omissiva desse crime? Sendo uma simples omissão, não é, a rigor, uma atividade.

O “dedicar-se” a atividades criminosas contém, por seu lado, mais um indicador de situação de algum modo permanente. Quem comete um só crime, talvez dois, pode muito bem não estar se dedicando a atividades criminosas. Ainda que cometa outros, se forem próprios de situações ocasionais, que não signifiquem mera repetição, nem reiteração, também possivelmente não estará agindo por dedicação a atividades criminosas. Nesse ponto surge de novo a pergunta: quantos crimes configurarão a conduta de “dedicar-se” alguém a tais atividades? Deverão ser crimes definidos pelos mesmos tipos penais, ou bastará que sejam contra os mesmos bens jurídicos? Deverão ser praticados num determinado intervalo temporal ou numa mesma região? A pessoa dedicada a atividades criminosas é aquela que pratica crimes continuados?

Mas não é só. Não deve fugir à percepção que a expressão comentada é composta pela contração da preposição a com o artigo definido feminino plural as, de sorte a resultar no emprego do vocábulo às, com crase, segundo se vê da redação “não se dedicar às atividades criminosas”. Isso parece querer indicar atividades criminosas determinadas. Não são quaisquer atividades criminosas então aquelas a que o dispositivo se refere, mas algumas e certas atividades criminosas. Isso se evidencia pela decomposição do vocábulo: a + as.

E quais seriam elas, as atividades criminosas? A grafia da expressão e principalmente o uso do artigo definido as sugere algo de que o texto já tratara, ou vinha tratando. Vista a questão por esse ângulo, essas atividades criminosas não poderiam ser outras que não aquelas compreendidas no bojo da própria Lei n. 11.343. Ou seja, tomada ao pé da letra, a expressão, do modo como vem redigida, abrange somente as atividades criminosas relacionadas com a produção e a circulação ilícita de substâncias entorpecentes. Vai daí que a possível dedicação do réu a crimes de roubo ou de homicídio, por exemplo, não constituiria impedimento a que lhe fosse concedida a redução da pena, já que ele, afinal de contas, não se dedica às atividades criminosas de que cuida a Lei de Drogas. E se a dedicação ao que quer que seja reclamará ou não inquérito policial, processo ou condenação criminal definitiva é tema que não caberia nos limites deste trabalho.

O restante da expressão contida no final do questionável parágrafo quarto também instiga a uma difícil reflexão. “Organização criminosa” terá aqui o mesmo sentido que o definido pela Lei n. 9034/95 [2], que equipara essa expressão à quadrilha e ao bando? Se assim for, a dificuldade está por conta de se desconhecer o momento em que algo se caracterizaria como tal. Seria necessária uma condenação transitada em julgado por crime de quadrilha ou bando? Já que “integrar organização criminosa” configura uma restrição ao direito de alguém ter a pena diminuída, a expressão deve, salvo engano, ser tomada no seu sentido mais estrito; se existe noutra lei uma expressão semelhante, nitidamente identificada com um tipo penal (o de quadrilha ou bando), quer parecer que seria preciso estar esse delito inequivocamente configurado e reconhecido para justificar considerar-se alguém integrante de organização criminosa, vale dizer, integrante de quadrilha ou bando. E esse reconhecimento, em tema de direito penal, só é determinado pela condenação passada em julgado. Ademais se há de ter presente que “ser integrante” é uma qualidade do que é permanente, o que, como sabido, constitui requisito do crime de quadrilha ou bando, não abrangendo o indivíduo que só eventualmente atua a serviço da organização.

Diante de tantos percalços na tentativa de apreender o verdadeiro sentido dessas expressões, não espanta que no processo criminal n. 050.06.055689-7, da 31ª Vara Criminal de São Paulo, em sentença datada de 10 de maio de 2007, o juiz tenha deixado de reconhecer a incidência do parágrafo quarto do artigo 33 por considerá-lo inaplicável posto não haver, “no ordenamento jurídico conceito de atividades criminosas e de organização criminosa”.

Em suma, não parece mesmo possível responder com exatidão à terceira pergunta, mas uma das hipóteses viáveis é que “não se dedicar às atividades criminosas” significa não praticar habitualmente as condutas descritas na Lei de Drogas, passando-se ao largo de dever ou não a eventual dedicação do réu ser objeto de condenação transitada em julgado; não ser “integrante de organização criminosa” significa não registrar condenação definitiva por crime de quadrilha ou bando. Se essa exegese satisfaz ou não os desígnios do legislador que introduziu o parágrafo quarto no artigo 33 da Lei n. 11.343/06 é assunto que por enquanto refoge às possibilidades de imaginação de qualquer intérprete.

Pergunta 4 – A auto-aplicabilidade do parágrafo quarto do artigo 33 da Lei de Drogas é defensável na proporção inversa da imprecisão do legislador em descrever os requisitos da causa de redução de pena ali contida.

Eficácia da norma jurídica é uma categoria pertencente aos domínios da teoria geral do direito. Significa que a norma válida e vigente é passível de ser concretamente aplicada e produzir também concretamente os efeitos por ela estipulados, mesmo que a finalidade última, antevista pelo legislador ao criá-la, não se realize. Quer isso também dizer que em tal ou qual caso concreto não há óbices jurídicos para sua aplicação. Para alguns isso se chama efetividade. Há certos casos em que mesmo a norma não vigente pode conservar sua eficácia, como ocorre com a lei penal já revogada que seja mais benéfica para o réu e que, não obstante sua revogação, continua regendo o fato praticado quando vigorava.

A eficácia da norma depende de alguns requisitos. Um deles é a existência de fato da situação que o seu comando prevê. Outro é, como já dito, a inexistência de óbices legais, como a presença de regras que excluam sua incidência fora dos limites de determinado território, ou de determinado tempo, ou ainda quando as pessoas por ela potencialmente atingidas estejam, por imposição de outra norma, fora de seu alcance, como sucede com casos de imunidade (diplomática, fiscal etc.).

Um outro ainda é que a norma contenha em si mesma todos os elementos que possibilitem sua concretização, ou que, se não os tiver, que exista uma outra norma que a complete e promova a reunião de tais elementos. Nessa hipótese a eficácia da norma será indiscutível. Verificada a situação de fato que ela prevê e inexistindo óbices legais envolvendo tempo, lugar e destinatário, encontra-se à disposição do juiz para fazê-la atuar no caso sob julgamento, certo que essa atuação produzirá os efeitos imediatos determinados pelo comando normativo.

Uma norma auto-aplicável é a que, por ter em si reunidos os elementos necessários à sua concretização, pode produzir os efeitos nela inscritos. Será também aplicável, embora já não se possa considerá-la auto-aplicável, se lhe faltarem aqueles elementos mas existir outra norma vigente que os forneça, tornando ao juiz igualmente possível utilizá-la para decidir um caso real.

Pois bem. Opiniões há no sentido de que o parágrafo quarto do artigo 33 da nova Lei de Drogas não é nem uma coisa nem outra. Segundo esse entendimento ele simplesmente não poderia ser aplicado por ser ineficaz, já que despido de elementos que definam suficientemente as premissas de sua aplicação, como as expressões “atividades criminosas” e “organização criminosa”.

O argumento em prol dessa conclusão é o utilizado pelo juiz na mesma sentença mencionada no item anterior, da 31ª Vara Criminal de São Paulo: trata-se de norma que reclama um complemento que lhe empreste maior determinação, razão porque “até a complementação da norma legal, esclarecendo-se as definições em destaque [do que sejam “atividades criminosas” e “organização criminosa”], ela é ineficaz”. O raciocínio vem acompanhado de interessante nota, cujo teor vale repetir:

Pensamento análogo se tinha quando em vigência o art. 192, parágrafo 3º, da Constituição Federal, em que não se sabia o que eram “juros reais”, exigindo legislação complementar para a incidência de 12% anuais nas operações efetuadas por instituições financeiras. O dispositivo veio a ser revogado por Emenda Constitucional (n. 40, de 29.5.2003) e, mesmo assim, o Supremo Tribunal Federal editou Súmula, 648, em que, mesmo que em vigor, a norma não teria auto-aplicabilidade.

Nessas condições e a prevalecer tal entendimento, estar-se-ia diante de uma norma inaplicável, pois carecedora de uma complementação que ainda não existe. De tal sorte poderia ser equiparada a uma norma do tipo programática, à espera de outra mais específica que lhe possibilite uma atuação concreta.

Procurando-se responder a quarta indagação, seria então viável afirmar que: 1) ou se reconhece a inaplicabilidade do dispositivo em face da imprecisão das expressões “atividades criminosas” e “organização criminosa”, caso em que, mesmo frente a um réu provadamente sem antecedentes penais, o juiz ficaria impossibilitado de lhe reduzir a pena; 2) ou se adotam para tais expressões os conceitos propostos na resposta à terceira pergunta, conforme consta do item anterior, que são necessariamente restritos, pelos motivos lá elencados, mas que, de qualquer forma, permitem a aplicação do citado parágrafo quarto do artigo 33.

Pergunta 5 - A prova de circunstância específica, não contida na acusação formalizada na denúncia ou na queixa, capaz de reduzir a pena do réu, usualmente é produzida por quem dela se puder diretamente beneficiar, que no caso é o próprio acusado.

Assim é o que costuma ocorrer com as causas especiais de diminuição de pena previstas pela Parte Especial do Código Penal, como são o homicídio privilegiado (art. 121, § 1º), o furto privilegiado (art. 155, § 2º), a lesão corporal privilegiada (art. 129, § 4º) etc.

A base legal para isso está contida no art. 156 do Código de Processo Penal. De fato, a regra é que o ônus da prova é de quem alega o fato. O entendimento dessa norma deve, no entanto, ser formado ante as peculiaridades que regem o processo penal, voltado para a busca da verdade real. Porque não tendo como finalidade solucionar conflitos entre interesses privados, relativos a bens disponíveis, todos os esforços realizados no âmbito do processo criminal são dirigidos à busca da mais fiel representação dos fatos ocorridos. Quer isto dizer que é tal objetivo que deve nortear a ação do juiz e do Ministério Público.

Ora, a regra de que o ônus da prova incumbe a quem alega nada mais é, em matéria de processo penal, que uma ordenação racional do procedimento, uma norma de organização, a determinar que a prova fica a princípio a cargo de quem faz uma afirmação. Isso, no processo civil, é uma regra absoluta, mas no penal não é, justamente por conta do princípio da verdade real, a significar que o juiz não deve conformar-se com uma verdade meramente formal, que se estabeleceu nos autos por conta da inércia, ou do conformismo de uma das partes, ou mesmo do acordo de vontades entre elas.

Tanto é assim que o próprio art. 156 do Código de Processo Penal, após determinar o ônus de provar para quem fizer a alegação, dispõe que o juiz poderá determinar de ofício diligências para esclarecer ponto relevante para o deslinde da causa. Trata-se do reconhecimento legal de que, mesmo não provado pela parte que fez tal ou qual alegação, se se cuidar de aspecto relevante, o juiz poderá ir à procura da prova. Isso reforça o que já se disse a respeito do interesse na busca pela verdade real no processo. Essa busca também não deixa de ser dever do órgão do Ministério Público, cujo norte igualmente há de ser o estabelecimento da verdade correspondente aos fatos ocorridos.

Essa procura pela fiel representação nos autos dos fatos acontecidos naturalmente se estende às circunstâncias que rodeiam tais fatos e que servem para modular a pena eventualmente a ser imposta. Dos fatos e de sua adequação ao tipo legal surge a imputação feita ao réu. O tipo legal do homicídio é determinado pelo caput do art. 121 do Código Penal. O que o parágrafo primeiro desse artigo descreve são circunstâncias, no caso capazes de reduzir a pena do possível condenado. Normalmente são alegadas pela defesa do acusado, que dela pretende se beneficiar. Mas diante de uma alegação razoável, que a defesa não tenha conseguido provar, ou não tenha se empenhado para isso, o juiz e o órgão do Ministério Público não poderão ficar inertes e deixar tal alegação de lado só porque ela partiu da outra parte (outra parte na ótica do Ministério Público, para os que o consideram parte). Deverão – e não apenas poderão – se colocar na busca do esclarecimento dessa questão. O resultado eventualmente positivo de tal procura não representará prejuízo algum para o órgão da acusação, cujo interesse principal não é necessariamente a condenação ou uma pena elevada, mas a justa aplicação da lei aos fatos.

É também possível que a circunstância redutora de pena nem sequer seja alegada e surja nos autos simplesmente como resultado da colheita de provas. Alegar, conforme lembrado por NUCCI, “significa afirmar algo, citar um fato em defesa de um ponto de vista ou expor um argumento para sustentar uma razão” [3]. Mas, sempre lembrando a necessidade imposta ao Estado de procurar o estabelecimento nos autos de uma verdade o mais próximo possível da ocorrência concreta e dos fatos reais, incumbirá, diante de uma suspeita razoável, buscar elementos capazes de dirimir dúvidas e formar no juízo uma convicção segura. Essa incumbência está imposta indistintamente ao Estado-juiz e ao órgão estatal defensor da legalidade democrática e dos interesses individuais indisponíveis, que é o Ministério Público [4].

A causa de diminuição de pena contida no parágrafo 4º do artigo 33 da nova Lei de Drogas é uma circunstância que, como tal, não modifica o contorno típico do crime de tráfico definido no caput do art. 33, mas que é capaz de reduzir a pena do réu porventura condenado nos termos deste último dispositivo. Sua prova é, em princípio, ônus de quem fizer essa alegação, mas, com ou sem ela, diante de um indício sério de sua possível presença, é dever do Estado, que atua no processo por intermédio do juiz e do promotor, procurar esclarecimentos sobre sua existência.

Há, por outro lado, o problema de como fazer tal prova. É que o dispositivo legal descreve, na verdade, uma circunstância negativa. O réu não deve se dedicar às atividades criminosas nem integrar organização criminosa. Como provar algo que não ocorre? O que não acontece é um fato negativo, ou melhor, um não-fato. Objeto de prova são fatos, nessa categoria compreendidos todos os eventos do mundo real, inclusive as circunstâncias capazes de influir na dosagem da pena. Vale lembrar a lição de TOURINHO acerca de fatos como objeto de prova:

Tão extenso é o seu conceito, sob o ponto de vista da prova, que Alcalà-Zamora chega a esta afirmação: é fato o que não é direito. Por isso, acrescenta o festejado mestre, a prova pode recair sobre fatos de natureza diversa: um cadáver, armas, instrumentos, substâncias nocivas, insanidade mental etc. [5]

A prova dessa circunstância é, assim, tarefa difícil e de resultado nunca definitivo. Requer a vinda aos autos de informações – colhidas pelos mais diversos meios – no sentido de que o réu não é dedicado às atividades criminosas e não integra organização criminosa. Mas tais informações sempre estarão circunscritas a um determinado local e a um certo tempo. Mesmo que se juntem certidões negativas de condenações anteriores, será possível que em algum lugar, fora da área investigada na busca pelas informações, o réu tenha sofrido uma condenação ou lá se dedique às tais atividades criminosas.

Mas é sem dúvida assim que se deve proceder, não cabendo ao juiz simplesmente considerar que a ausência de quaisquer informações desabonadoras do acusado autorizam o reconhecimento da causa de diminuição de pena. Afinal de contas, embora não configure causa modificadora da adequação típica do fato sub judice, trata-se de circunstância que altera a pena a ele cominada pelo dispositivo definidor do crime.

Por fim, na procura por uma resposta à indagação n. 5, parece viável sustentar que a prova da circunstância contida no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/06 é incumbência, em princípio, de quem faz tal alegação; se, embora não alegada, surgirem suspeitas fundadas de sua presença, é dever do juízo e do Ministério Público buscar os esclarecimentos necessários para o esclarecimento da questão. Meio de prova de algo que o acusado não faz são, com as dificuldades inerentes a uma prova negativa, todos os meios probantes legalmente admitidos, não sendo possível ao juiz admitir a presença da circunstância apenas pela ausência de qualquer informação desabonadora do réu. Essas informações devem ser procuradas em determinados limites espaço-temporais e só a vinda de elementos atestando que o que se procura não foi encontrado permitirá ao julgador o reconhecimento da causa de diminuição.

Pergunta 6 - Por último, na tentativa de determinar a quem compete o reconhecimento da citada circunstância, importa lembrar que ao juízo das Execuções Criminais cabe a aplicação de “lei posterior que de qualquer modo favorecer o condenado”, como verte do art. 66 da Lei de Execução Penal (Lei n. 7210/84).

Isso no caso do já condenado definitivamente, vale dizer, com um título condenatório passado em julgado. Para os processos ainda em andamento a competência será do juízo de conhecimento, seja ele de primeiro ou de segundo grau, conforme o caso.

Essa competência do juízo das Execuções é matéria sumulada pelo Supremo Tribunal Federal [6], o que sugere ter o tema sido objeto de controvérsias jurisprudenciais decerto determinadas pela discussão acerca da possível impropriedade de que matéria relacionada à adequação típica de um fato fosse considerada pelo juízo de execução e não pelo de conhecimento. Mas o texto expresso da LEP e o tratamento dado ao assunto pela Corte Suprema parecem jogar uma pá de cal sobre a questão.

O advento de lei mais benigna, sendo matéria de ordem pública, pode ser reconhecido de ofício pelo juízo competente. Mas o condenado e o Ministério Público poderão evidentemente suscitar judicialmente o problema. Da decisão caberá recurso de agravo, sem efeito suspensivo, nos termos do disposto no art. 197 da LEP. Por sua semelhança com o recurso em sentido estrito, inclusive no tocante ao juízo de retratação, e pela ausência de normas procedimentais específicas, esse recurso seguirá o trâmite previsto para aquele, a começar no que se refere ao prazo para interposição, que é de cinco dias. [7]

A ausência de efeito suspensivo do agravo poderá eventualmente levar a um recálculo da pena que permita ao sentenciado, em tese, alcançar de plano um benefício que antes, por falta de lapso prisional, lhe era vedado. Claro que, presentes os pressupostos do periculum in mora e do fumus boni juris, poderá o recorrente, no caso provavelmente o Ministério Público, impetrar mandado de segurança visando obter a suspensão temporária dos efeitos da decisão hostilizada.

Com base no princípio da fungibilidade dos recursos, eventual correição parcial interposta poderá ser recebida como agravo, segundo já reconhecido pelo extinto Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo [8]. Da mesma forma, o melhor entendimento é no sentido de que não está vedada a via do habeas corpus se o interessado não se valeu do seu direito de interpor agravo.

Ocorrendo que o juízo da execução se declare incompetente para analisar a aplicabilidade da nova lei mais benigna [9], a questão se resolverá nos termos do que dispõe o Código de Processo Penal, artigos 95, 108, 109 e 113-117, relativamente à exceção de incompetência e ao conflito de jurisdição. A demora que eventualmente decorrer do processamento e da decisão a respeito do assunto, desde que verificada coação ilegal quanto ao direito de locomoção do interessado, ensejará impetração de habeas corpus.

Assim, a resposta mais adequada à pergunta n. 6 parece ser que compete ao juízo das Execuções Criminais reconhecer a incidência da nova lei mais favorável ao sentenciado, desde que sua condenação seja definitiva. A decisão ficará sujeita ao recurso de agravo, não afastada a possibilidade de habeas corpus, se presentes os seus requisitos específicos.

Referências bibliográficas

GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1997.

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1965, v. II.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1977, v. I, tomo I.

MARCÃO, Renato Flávio. Lei de Execução Penal anotada. São Paulo: Saraiva, 2001.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 3.

[1] Comentários ao Código Penal

[2] Esta lei, datada de 3 de maio de 1995, “dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas”.

[3] Código de Processo Penal comentado, p. 333

[4] Cf. o art. 127, “caput”, da Constituição Federal

[5] Processo penal, v. 3, p. 222

[6] Cf. Súmula 611

[7] Cf. acórdão do STF relatado pelo Min. Carlos Velloso, publicado no DJU de 12/dez./1997, segundo lembrado por Renato Flávio Marcão, em seu Lei de Execução Penal anotada, p. 512

[8] Cf. acórdão relatado pelo juiz Rulli Júnior,nos autos do feito n. 1.089.401/9, proferido em 12;mar./1998, de novo como lembrado por Renato Flávio Marcão, op. cit., p. 516.

[9] Possivelmente pretendendo que a via adequada seja a da revisão criminal, a ser proposta perante o tribunal.


Plínio Antônio Britto Gentil, Procurador de Justiça/SP, Professor de Direito Penal e Processual Penal, Doutor em Direito das Relações Sociais (PUC-SP), Procurador de Justiça no Estado de S. Paulo, Membro do Movimento Ministério Público Democrático, Pesquisador em Direito e Educação (UFSCar)

GENTIL, Plínio Antônio Britto. Lei de drogas: muitas perguntas, algumas respostas. Disponível na internet www.ibccrim.org.br 14.08.2008.

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