sábado, 16 de agosto de 2008

Artigo: Estupro: um crime falsamente complexo

O juízo de que o estupro é crime complexo em sentido amplo é inexato. É preciso que o orgulho intelectual dos operadores do Direito perca-se no meio da multidão ou nunca conseguiremos persuadi-la de que ela nada sabe quando pensa que tudo sabe. Só os grandes homens conseguem entender as extremas balizas do saber, além das quais os tesouros das conquistas humanas estiolam-se.

Disse, certa feita, Chateaubriand, em seu "Gênio do Cristianismo", que "sistemas sucederão eternamente os sistemas e a verdade ficará sempre desconhecida".

O historiador Plutarco registrou que Aristarco julgava que os gregos deveriam processar Cleanto de Samos e condená-lo por blasfêmia contra os deuses, porque ousara mudar o centro do mundo, supondo que o céu permanecia imóvel e que a Terra movia-se pelo circuito oblíquo do zodíaco, girando ao redor de seu eixo.

É preciso lembrar que a Igreja condenou Copérnico, mas que, seis anos depois, permitiu que seu sistema fosse ensinado como simples hipótese… E, também, que Tycho- Brahe, um dos mais lúcidos padres católicos, especialista em Astronomia, sempre negou o movimento da Terra. Mas, mesmo assim, anos mais tarde, o papa Gregório, reformador do calendário, o monge o papa Gregório, reformador do calendário, o monge Francis Bacon, o verdadeiro inventor do telescópio, o cardeal Cuza e o padre Gassendi tornaram-se protetores da Astronomia…

J. Frederico Marques, como sabem os operadores do Direito Penal, foi o criador da dicotomia entre os crimes complexos em sentido amplo e os crimes complexos em sentido estrito. Crimes complexos, esclarece, são aqueles cuja descrição típica é integrada, pelo menos, por dois outros delitos que, conjugados, formam outra infração penal distinta, como o latrocínio, resultante de um furto ou roubo seguido de morte.

Crimes complexos em sentido estrito, como repete a atual doutrina, são aquelas que, como o roubo, contêm dois ou mais tipos em uma única descrição legal. E crimes complexos em sentido amplo são aqueles em que a figura típica, abrangida em um tipo simples, é acrescida de fatos ou circunstâncias que, em si, não são típicas, como o estupro. Será?

O estupro é crime simples cujo núcleo do tipo revelado pela oração infinitava "constranger mulher à conjunção carnal" equivale a estuprar, surgindo como demasia o elemento subjetivo do tipo "mediante violência ou grave ameaça", pelo simples fato de ter como sujeito passivo, exclusivo, a mulher dissentânea à "introductio penis intra vas"…

É, portanto, o estupro um crime simples, tanto que possível sua redução ao núcleo "estuprar" desatrelado do pronome indefinido "alguém", já que homem não pode ser estuprado, embora sujeito passivo do coito "per anus" ou "per os", configurador do crime do artigo 214 do CP.

Assim, o crime em exame, numa eventual reforma da atual Parte Especial do CP poderia apresentar a seguinte redação:

"Estupro – Art. 213. Estuprar: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos. Parágrafo único. Se o ofendido é menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos."

O crime de estupro, em nosso entendimento, é simples porque a atual redação revela uma única ação punível, estuprar, camuflada pelo preceito "constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça", verdadeira moita de palavras que traduz única finalidade: a violação carnal da mulher. Hipocrisia querer divisar na hediondez do estupro um constrangimento ilegal seguido de vias de fato ou de lesões corporais. Crime político cometido contra a mulher há milênios, elaborado exclusivamente por homens, nada tem de complexo, visto que o sujeito ativo, quando orientado em direção à violação, jamais elabora juízos de valor em torno de eventuais constrangimentos ilegais ou lesões corporais, já que sua finalidade, última, é invadir a intimidade da mulher.

Alguém disse, certa feita, que as novas idéias surgem na mente dos loucos, migrem para as consciências lúcidas dos cientistas, para, a final, serem repetidas pelos pedantes. De qualquer forma, constitui grande alívio saber, nos dias atuais, que a Inquisição e suas fogueiras são mera, ainda que triste, notícia histórica…

Carlos Alberto Marchi de Queiroz

QUEIROZ, Carlos Alberto Marchi de. Estupro: um crime falsamente complexo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.24, p. 07, dez. 1994.

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