sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Artigo: Com a palavra, as partes

Após longa tramitação pelos gabinetes do Parlamento, o PL 4.205/01 fez-se lei (nº 11.690, de 9/6/08), aportando ao Código de Processo Penal importantes mudanças no capítulo relativo às provas, cuja produção passa a contar com uma participação mais ativa e direta das partes. Antes, contudo, de enfrentarmos essa questão, vale registrar que, com a entrada em vigor da nova lei (60 dias após sua publicação), o processo penal brasileiro passa a:

1. Vedar de modo explícito, no novo texto do artigo 155 do CPP, a utilização exclusiva dos elementos informativos colhidos na investigação criminal, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Com isso, faz-se importante distinção entre o que corretamente se denomina elementos informativos, colhidos na investigação criminal, e provas que, dada sua natureza urgente, são produzidas já na fase inquisitorial da persecução penal, diferindo-se o contraditório sobre elas para o momento processual próprio.

2. Reconhecer, dando maior densidade ao art. 5º, inciso XII da Constituição da República, a proibição do uso de provas ilícitas, “assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”, de âmbito material. Em tal hipótese, bem como quando se cuidar de prova ilícita por derivação, a nova redação do art. 157 do CPP determina o desentranhamento da prova, ressalvados os casos em que não restar evidenciado o nexo de causalidade entre a prova original ilícita e a contaminada, ou quando esta última puder ser obtida por fonte independente daquela.

3. Admitir, na redação dada ao artigo 159 do CPP, a possibilidade de ser o exame pericial realizado por um único perito oficial (ou mais de um, se complexa a perícia), portador de diploma de curso superior, ou, na sua falta, por duas pessoas idôneas, compromissadas e com igual formação superior, “preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame”.A principal inovação, todavia, diz com a permissão para que as partes (e também o ofendido), além de formularem quesitos, indiquem assistentes técnicos, que poderão emitir parecer sobre a perícia oficial e, tal como os experts do Estado, ser ouvidos em audiência.

4. Maximizar a proteção à vítima do crime objeto da persecução, tanto para atenuar os riscos de uma vitimização secundária quanto para salvaguardá-la de novas ações delitivas do acusado. Assim, com o novo teor do artigo 201 do CPP, o ofendido passa a ser comunicado, no endereço (inclusive eletrônico) por ele indicado, dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem (§§ 2º e 3º).

Outrossim, o ofendido deverá dispor de espaço separado “antes do início da audiência e durante a sua realização” (§ 4º), devendo o juiz adotar todas as providências necessárias “à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação” (§ 6º). Por sua vez, o artigo 217 prevê que o juiz, se verificar “que a presença do réu poderá causar humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido, de modo que prejudique a verdade do depoimento”, deverá colher a prova oral por meio de videoconferência, assegurada a presença do réu, salvo impossibilidade do uso de tal tecnologia, quando, então, o acusado será retirado da audiência durante o depoimento.

Parece-nos que, sem embargo do relevo dessas alterações legislativas, a que produzirá maior mudança na rotina dos profissionais do foro criminal é a consubstanciada no artigo 212 do CPP, que passa a ter a seguinte redação: “Art.212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.”

A simples leitura desse dispositivo faz aflorar a percepção quanto a duas importantíssimas modificações na metodologia de colheita da prova oral: (a) as perguntas à vítima e às testemunhas passarão a ser feitas diretamente a esses sujeitos processuais (exame direto), sem a intermediação judicial (exame judicial); (b) o juiz, na tomada dos depoimentos, deverá assegurar às partes a iniciativa das perguntas, reservando a si o papel de complementar a inquirição, diante de eventual dúvida ou omissão sobre o thema probandum.

A mudança é alvissareira. Nosso sistema processual penal, em que pese caracterizado como acusatório (com separação das funções de acusar, defender e julgar), nunca conseguiu livrar-se do ranço inquisitorial que vem de longa data. Recorde-se das primeiras décadas de vigência de nosso primeiro Código de Processo Criminal do Império, quando os policiais detinham funções judiciais e os juízes, funções policiais (policialismo judiciário). Exemplo disso era a nomeação, entre os desembargadores e juízes de Direito, para exercerem, também, a função de chefe de polícia e delegado.

A confusão de papéis também atingiu, no passado, o órgão oficial de acusação. Vale como exemplo, ainda no Império, a denominação dos membros do Ministério Público em segundo grau como “desembargadores promotores de Justiça” (Decreto nº 1.723, de 16/02/1856). Na República, a confusão de papéis se mostrava nítida na composição de tribunais, como o Tribunal de Justiça de São Paulo, onde o procurador-geral podia tomar parte no julgamento das causas, como relator ou revisor(1). O que dizer então do largo período — interrompido com a Carta Magna de 1988 — em que a redação original do Código de 1941 permitia ao juiz de Direito iniciar processos, por meio de portaria (os assim chamados processos judicialiformes), tal como ocorria, por exemplo, no procedimento sumário das contravenções? O fato é que essas anomalias na distribuição dos papéis principais desempenhados na persecução penal ainda afetam, nem sempre conscientemente, a praxe do foro criminal, como o demonstra o hábito judicial de iniciar os depoimentos das testemunhas e ofendido, deixando às partes o papel complementar na colheita da prova oral.

Com a vigência da Lei 11.690/08, expurga-se tal lógica inquisitorial, reservando-se às partes o bem-vindo protagonismo na iniciativa probatória, sem, todavia, privar o juiz de complementar, se necessário, a comum missão de buscar a verdade sobre os fatos subjacentes à imputação, conforme a dicção dada ao artigo 156 do CPP.

Aqui vale registrar nossa discordância com os que sustentam não caber ao juiz natural da causa qualquer iniciativa probatória, mesmo no curso da instrução criminal. É preciso distinguir: se ainda não há imputação, não há processo e, portanto, são impertinentes e atentatórias à imparcialidade e ao modelo acusatório as iniciativas judiciais tendentes a, durante as investigações inquisitoriais e sem provocação do interessado, buscar provas. Sem embargo, diversa é a situação quando, já iniciada a ação penal (ou mesmo antes, desde que provocado), passa o juiz da causa a exercer, com soberania, sua função natural de entregar a prestação jurisdicional, sem condicionamentos outros que não as regras procedimentais e os limites epistemológicos e éticos no cumprimento de seu múnus. Cuidando-se de atividade de natureza pública, que interessa a toda a coletividade, não se pode tolher o juiz da possibilidade de, com isenção e prudência, também diligenciar para trazer aos autos informações e provas que conduzam à verdade mais próxima possível da realidade histórica dos fatos sobre os quais gira a pretensão punitiva.

Vê-se, nesse aspecto, que a nova lei, na redação dada ao artigo 156, foi além do que deveria, ao permitir ao juiz ordenar, de ofício e “mesmo antes de iniciada a ação penal”, a produção antecipada de provas urgentes e relevantes, o que, como já dito, pode comprometer sua imparcialidade e desfigurar a estrutura acusatória do processo penal. Decerto que, mesmo sem a previsão explícita ora consagrada, os juízes criminais já exerciam esse papel (nem me refiro à anacrônica condução pessoal de investigações, por desembargadores estaduais e ministros de tribunais superiores, quando se trata de crimes atribuídos a autoridades com prerrogativa de foro), mas, com o novo texto legislativo, reforça-se esse poder, que se antevê seja considerado incompatível com a Constituição, tal qual ocorreu em relação aos poderes conferidos ao juiz pelo artigo 3º da Lei 9.034/95, reputado inconstitucional pelo STF, no julgamento da ADI 1570.

Espera-se, com cauteloso otimismo, que as mudanças legislativas efetivamente produzam a apregoada otimização da prestação jurisdicional, mercê da compreensão, por parte da Magistratura, do Ministério Público e da Advocacia, dos novos papéis que assumem na condução da prova.

Nota

(1) Vale conferir o recente julgado do Pleno do STF (HC87.926/SP, relator min. Cezar Peluso, j. 20/02/2008, DJU 25-04-2008), que passou a reconhecer (leading case) que o MP, no julgamento dos recursos criminais, atua também como parte, devendo a defesa falar por último na sustentação oral, ao contrário do que afirma o artigo 610, parágrafo único, do CPP.

Rogerio Schietti Machado Cruz, Procurador de Justiça, doutor e mestre em Direito Processual Penal pela USP.


Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008

Um comentário:

Wilson Rezende disse...

Passando para melhorar meu conhecimento em Direito, um ótimo sábado Prudente.

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