segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Artigo: Bom para quê(m)?

A Lei 11.690/2008 é resultado de mais uma reforma pontual no arcaico Código de Processo Penal, virado que está, em verdadeira colcha de retalhos. E o problema já começa aqui: a insuficiência de uma reforma pontual, essencialmente minimalista, ilógica e geradora de inúmeras lacunas e dicotomias internas. Ademais, possui um gravíssimo vício de origem: a ausência de um princípio unificador que impede consistência e coerência sistêmica.

E, justiça deve ser feita, por mais qualificados que sejam os juristas que integram a Comissão — e o são, sublinhe-se — o problema é metodológico. Se lhes fosse dada a oportunidade de fazer uma reforma total, com a elaboração de um novo Código, que tenha a Constituição e a Convenção Americana de Direitos Humanos co­mo núcleo imantador, a situação seria completamente distinta. Assim, há que se compreender a lógica da coexistência, onde o respeito pelo trabalho feito não é diminuído pelas críticas que faremos (que podem ser injustas...) a continuação.

Também se deve considerar que uma mudança legislativa nunca é suficiente, se com ela não vier uma mudança de mentalidades. O rompimento com o passado significa superação de paradigmas e estabelecimento de “outra” cultura jurídica. Para isso, o choque deve ser forte. A reforma pontual peca por insuficiência de choque cultural, de força para romper com a estrutura vigente. É inegável que quando as “novas práticas” têm de conviver com as “velhas práticas”, cria-se um terreno fértil para a manutenção do status quo. Muda-se tudo, para continuar como sempre esteve...

Registrada a irresignação com a sistemática adotada, façamos uma igualmente “pontual” (assumidamente inconsistente, portanto) análise das principais alterações na sistemática “das provas”.

O Direito é moderno e cartesiano, mas os juristas não deveriam sê-lo. E todos os esforços deveriam ser empreendidos para superar o paradigma da modernidade e do cartesianismo. Infelizmente, insistimos no mundo do “faz de conta que....”, fechando os olhos para a complexidade que aí está e, principalmente, a superação e insuficiência do monólogo jurídico.

O art. 155 não teve coragem para romper com a tradição brasileira de confundir atos de prova com atos de investigação(1), com graves reflexos na eficácia probatória deles. A redação vai muito bem, até o ponto em que inseriram a palavra errada, no lugar errado. E uma palavra, faz muita diferença... Bastou incluir o “exclusivamente” para sepultar qualquer esperança de que os juízes parassem de condenar os réus com base nos atos do famigerado, inquisitório e superado inquérito policial. Seguiremos assistindo a sentenças que, negando a garantia de ser julgado a partir de atos de prova (realizados em pleno contraditório, por elementar), buscarão no inquérito policial (meros atos de investigação e sem legitimidade para tanto) os elementos (inquisitórios) necessários para a condenação. Significa dizer que nada muda, pois seguirão as sentenças “fazendo de conta que....” o réu está sendo julgado com base nas provas colhidas no processo, quando na verdade, os juízes continuarão utilizando as clássicas viradas lingüísticas do “cotejando a prova judicializada com os elementos do inquérito...” ou “a prova judicializada é corroborada pelos atos do inquérito....”. Quando um juiz faz isso na sentença, está dizendo (discurso não revelado) que condenou com base naquilo produzido no inquérito policial (meros atos de investigação), negando o contraditório, o direito de defesa, a garantia da jurisdição etc., pois no processo não existem provas suficientes. Quem precisa “cotejar” e invocar o inquérito policial, quando a prova judicializada é suficiente? Aqui, a vedação de utilização dos atos de investigação (excetuando, é elementar, as provas técnicas irrepetíveis e aquelas produzidas no incidente judicializado de produção antecipada) já seria pouco.... O ideal seria ter coragem para romper, buscando a exclusão física dos autos do inquérito(2). Isso sim seria dar ao inquérito o seu devido valor e garantir o julgamento com base na máxima originalidade da prova (colhida no processo e em contraditório).

O art. 156 sempre foi um grande problema, especialmente para aqueles comprometidos com o sistema acusatório-constitucional. Incrivelmente, ficou pior! É insuficiente pensar que o sistema acusatório se funda a partir da separação inicial das atividades de acusar e julgar. Isso é um reducionismo que desconsidera a complexa fenomenologia do processo penal. De nada basta uma separação inicial, com o Ministério Público formulando a acusação, se depois, ao longo do procedimento, permitirmos que o juiz assuma um papel ativo na busca da prova ou mesmo na prática de atos tipicamente da parte acusadora, como, por exemplo, autorizar que o juiz de ofício determine uma prisão preventiva (art. 311), uma busca e apreensão (art. 242), o seqüestro (art. 127), ouça testemunhas além das indicadas (art. 209), proceda ao reinterrogatório do réu a qualquer tempo (art. 196), determine diligências de ofício (art. 156), reconheça agravantes ainda que não tenham sido alegadas (art. 385), condene ainda que o Ministério Público tenha postulado a absolvição (art. 385), admita o chamado recurso ex officio (art. 574, I e II, do CPP) etc.(3).

Fica evidente a insuficiência de uma separação inicial de atividades se, depois, o juiz assume um papel claramente inquisitorial. O juiz deve manter uma posição de alheamento, afastamento da arena das partes, ao longo de todo o processo. Deve-se descarregar o juiz de atividades inerentes às partes, para assegurar sua imparcialidade. Nesse contexto, o art. 156 do CPP funda um sistema inquisitório, pois representa uma quebra da igualdade, do contraditório, da própria estrutura dialética do processo. Como decorrência, fulminam a principal garantia da jurisdição, que é a imparcialidade do julgador. Está desenhado um processo inquisitório.

A posição do juiz é o ponto nevrálgico da questão, na medida em que “ao sistema acusatório lhe corresponde um juiz espectador, dedicado, sobretudo, à objetiva e imparcial valoração dos fatos e, por isso, mais sábio que experto; o rito inquisitório exige, sem embargo, um juiz-ator, representante do interesse punitivo e, por isso, um enxerido, versado no procedimento e dotado de capacidade de investigação”(4).

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos, há muito tempo, e em diversas oportunidades, tem apontado a violação da garantia do juiz imparcial em situações assim, destacando, ainda, uma especial preocupação com a aparência de imparcialidade que o julgador deve transmitir aos submetidos à administração da justiça, pois, ainda que não se produza o pré-juízo, é difícil evitar a impressão de que o juiz (instrutor) não julga com pleno alheamento.

Mas não basta a garantia da jurisdição. Não é suficiente ter um juiz, é necessário que ele reúna algumas qualidades mínimas, para estar apto a desempenhar seu papel de garantidor.

A imparcialidade do órgão jurisdicional é um “princípio supremo do processo”(5) e, como tal, imprescindível para o seu normal desenvolvimento e obtenção do reparto judicial justo.

Enfrentando esses resquícios inquisitórios, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), especialmente nos casos Piersack, de 01/10/82, e de Cubber, de 26/10/84, consagrou o entendimento de que o juiz com poderes investigatórios é incompatível com a função de julgador. Ou seja, se o juiz lançou mão de seu poder investigatório na fase pré-processual, não poderá, na fase processual, ser o julgador. É uma violação do direito ao juiz imparcial consagrado no art. 6.1 do Convênio para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950. Segundo o TEDH, a contaminação resultante dos pré-juízos conduz à falta de imparcialidade. Seguindo essas decisões do TEDH, aduziu o Tribunal Constitucional espanhol (STC 145/88), entre outros fundamentos, que o juiz-instrutor não poderia julgar, pois violava a chamada imparcialidade objetiva, aquela “que deriva não da relação do juiz com as partes, mas sim de sua relação com o objeto do processo”.

Em definitivo, “a prevenção deve ser uma causa de exclusão da competência”. O juiz-instrutor é prevento e como tal não pode julgar. Sua imparcialidade está comprometida pelos diversos pré-julgamentos que realiza no curso da investigação preliminar(6).

A nova redação, além de incorrer no erro de manter a figura do juiz-ator, foi mais longe, permitindo no inciso I que o juiz “de ofício”, ordene, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida.

Pronto, consagraram o juiz-instrutor-inquisidor, com poderes para, na fase de investigação preliminar, colher de ofício a prova que bem entender, para depois, no processo, decidir a partir de seus próprios atos. Decide primeiro, a partir da prova que ele constrói, e depois, no golpe de cena que se transforma o processo, formaliza essa decisão. É exatamente isso que Cordero(7), define como o primato dell’ipotesi sui fatti, gerador de um quadri mentali paranoidi. A decisão já está tomada e o cenário é doentio: devemos nos preparar para atuar com juízes fazendo quadros mentais paranóicos. Na verdade, transtorno delirante de tipo persecutório, mas não no sentido de “estar sendo perseguido”, senão de que “deve perseguir” para reparar a injustiça sofrida pela vítima (ou pela “sociedade”, já que se coloca, ainda que inconscientemente, na posição de guardião da limpeza social). A questão poderia ainda ser tratada não no campo da patologia, mas como sentimentos persecutórios. De qualquer forma, são evidentes os prejuízos (decorrentes dos pré-juízos) para a imparcialidade do julgador.

Imaginem tais poderes nas mãos de algum juiz-justiceiro, titular de uma vara “especializada (de combate a)”, para compreender-se o tamanho do problema e o grave retrocesso de tal disposição legal. Perde-se um juiz e se ganha um inquisidor. Um bom negócio, sem dúvida... resta saber para quê e para quem...

O art. 157 traz para dentro do CPP alguma disciplina sobre as provas ilícitas. A inovação, que dará muita dor de cabeça para todos, é a pouco clara disposição acerca do nexo causal que define a contaminação e ainda, a chamada teoria da fonte independente. Como regra, são disposições vagas e imprecisas, que recorrem a aberturas perigosas, como “trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal”. O que é isso? Uma porta aberta, para legitimar-se qualquer coisa que sirva a clara intenção de limitar ao máximo a eficácia do princípio da contaminação.

Mas tinha algo nesse projeto que representava uma grande evolução, rumo ao desvelamento do infantil (ou perverso?) cartesianismo vigente. Era o § 4º do art. 157, cuja redação original era: “o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou o acórdão.”

Elementar! É óbvio que o juiz que conheceu da prova ilícita não pode julgar, pois está contaminado. Não basta desentranhar a prova, deve-se “desentranhar” o juiz!

Mas, para surpresa e decepção geral, este inciso foi vetado(!!), com uma pseudofundamentação, calcada em risíveis argumentos. No fundo, venceu a ideologia punitivista, e o substancialismo inquisitório, daqueles que, julgando-se “do bem”, não tem pudores em fazer o mal (ao “outro”, é claro), custe o que custar.

A pergunta é: isso é bom para quem? Quem nos protege desse tipo de bondade?

Depois, o que se vê são mudanças epidérmicas, permitindo que as perícias sejam feitas por apenas um perito oficial (e isso é bom para quem?); possibilidade de indicar assistente técnico; maior proteção para a intimidade da vítima; comunicação à vítima do ingresso e saída do acusado da prisão, da designação de data das audiências e também da sentença e acórdão (os pistoleiros de plantão agradecem, pois isso facilitará bastante o trabalho deles...); e algumas outras inovações de pouco relevo.

No fundo, infelizmente, se reforçou a matriz inquisitória do CPP, indo no caminho contrário àquele já sinalizado há muito tempo pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelas bem sucedidas reformas ocorridas em outros países.

Talvez seja melhor assim, seguirmos no mundo onírico, pensando que as coisas vão bem e fazendo de conta que não precisamos nos proteger da bondade dos bons...

Notas

(1) LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. 1, 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 491.

(2) Sobre o tema, consulte-se nossa obra Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, onde explicamos detidamente essas questões.

(3) LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. Vol. 1. 2ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, pp. 55 e segs.

(4) FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, p. 575.

(5) A expressão é de Pedro Aragoneses Alonso, na obra Proceso y Derecho Procesal, Madrid: Edersa, 1997, p. 127.

(6) OLIVA SANTOS, Andrés. Jueces Imparciales, Fiscales Investigadores y Nueva Reforma para la Vieja Crisis de la Justicia Penal. Barcelona: PPU, 1988, p. 30.

(7) CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: Utet, 1986, p. 51.

Aury Lopes Jr.
Doutor em Direito Processual Penal; professor do Mestrado em Ciências Criminais da PUCRS e advogado criminalista


Boletim IBCCRIM nº 188 - Julho / 2008

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