quarta-feira, 23 de julho de 2008

Entrevista: Virginie Malochet

O duplo chamado da Polícia Municipal francesa


As eleições municipais ocorreram na França em março e, mais uma vez, houve destaque considerável para as questões de segurança. O que se percebe é que, daqui para frente, o tratamento destas questões na França deve passar pelas comunidades locais. As respostas ou soluções, por sua vez, vão depender cada vez mais dos municípios e suas próprias polícias, as quais vêm se juntar aos tradicionais efetivos da Polícia Nacional.



O Comunidade Segura entrevistou Virginie Malochet, pesquisadora associada ao Laboratório de Análise de Problemas Sociais e Ação Coletiva (Lapsac). Doutora em sociologia, Malochet esclarece a especificidade de uma profissão ainda pouco conhecida e mostra como se dá hoje na França a descentralização das políticas de segurança pública.



A polícia francesa sempre foi essencialmente nacional. Quando e por que resurgiram as polícias municipais?



Mesmo que nunca tenham desaparecido completamente, as polícias municipais ganharam nova força na virada dos anos 1980, face ao aumento das preocupações relacionadas à segurança e ao crescimento real da delinqüência no espaço público. Tudo isso no contexto de uma relativo a falta de compromisso das forças policiais estatais percebido no nível local.



Este ressurgimento das polícias municipais ocorreu também dentro de uma conjuntura política de forte descentralização, já que as leis e dispositivos criados para a prevenção da violência foram progressivamente se deslocando para o âmbito da gestão local. Neste contexto, o número de comunidades equipadas com polícias municipais não parou de crescer, e os efetivos dessas corporações quase triplicaram num período de 25 anos.



Quando foram criadas as polícias de proximité 1?



Na França, foi em 1999 que a Polícia Nacional testou a reforma chamada police de proximité em várias localidades-piloto, antes de propagá-la para todo o território entre 2000 e 2002.



Como surgiram?



As questões que se colocam sobre a "proximidade" são um reflexo dos debates recorrentes sobre a necessidade de se reformar a polícia. Em quase todo o Ocidente, o sentimento de insegurança, as violências urbanas e as taxas de criminalidade revelam a ineficácia de um modelo policial direcionado para intervenções de urgência e questões judiciais, desconectado da população e de suas preocupações.



Em reação a isso, vários países que se inspiraram na "teoria dos vidros quebrados" 2 se voltaram para o desenvolvimento de novos programas de ação policial, segundo a perspectiva de que a polícia deve redefinir sua ação para estar mais próxima dos cidadãos e de seus problemas.



Que avaliação podemos fazer delas hoje?



Após o tremor eleitoral da primavera de 2002 e a mudança de governo, a police de proximité foi relegada a segundo plano, esvaziada de sua substância em benefício de uma revalorização das tradicionais missões repressivas. No entanto, a necessidade de aproximação entre polícia e população permance atual, confome indica um pronunciamento recente da atual ministra do Interior sobre a necessidade de se estabelecer um pacto de confiança recíproca.



Podemos afirmar que as polícias municipais desempenham o papel de uma police de proximité?



Com certeza. As polícias municipais se inscrevem na mesma linhagem de uma police de proximité. Por definição, são polícias locais, vinculadas diretamente a um determinado território. Elas são comandadas pelos prefeitos que, geralmente, são suscetíveis a atender às demandas dos seus subordinados, os quais são também eleitores potenciais.



Qual é a diferença entre as ações das polícias locais e a Polícia Nacional e a Gendarmerie (Polícia Militar)?



Levando-se em conta os limites de seus mandatos, as políticas municipais são desobrigadas dos procedimentos que sobrecarregam os serviços da Polícia Nacional 3 e da Gendarmerie4; elas têm mais tempo para estar no local, realizar missões cotidianas nos espaços públicos e realizar mediações.



No entanto, nos últimos anos, observamos uma tendência repressiva em suas atividades, em decorrência das novas prerrogativas judiciárias que lhes foram atribuídas. À medida que se profissionalizam, elas tendem a seguir o modelo da Polícia Nacional. Também, em alguns casos, quando prefeitos as empregam como paliativos da ausência das forças do Estado, elas se assemelham a polícias complementares. Centradas nas ações de controle e interpelação, elas constituem desta forma efetivos de apoio, de reforço para a Polícia Nacional.



Pode-se falar de uma municipalização da questão da segurança pública na França?



Na França, apesar do peso da tradição centralizadora, observamos uma tendência clara de municipalização destas questões. A partir das leis de descentralização dos anos 1980, assistimos a um movimento contínuo de territorialização da ação pública. Neste sentido, a lei de prevenção da delinqüência de março de 2007 reafirma o papel central do prefeito nas políticas locais de segurança. Dito isso, a comparação internacional se mostra delicada tendo-se em vista a diversidade dos sistemas político-administrativos.



A senhora poderia explicar as duas grandes tendências dos policiais municipais quanto à forma pela qual eles percebem a sua missão?



Eu faço a distinção entre dois "tipos ideais": o bobby, que é próximo da população, do serviço do público, e o flic, mais distante, a serviço da lei, à procura do delito flagrante. Na verdade, os policiais municipais nunca encarnam exclusivamente um dos dois modelos. A maioria deles apreende a sua atividade a partir de duas dimensões de sua identidade profissional, uma sendo a municipal e a outra, policial.



Como assim?



Esta ambivalência é inerente ao seu estatuto e, se às vezes torna-se difícil equilibrar estes diferentes registros (prevenção, repressão, serviço, mediação, controle etc.), é isso que caracteriza a riqueza de sua profissão. Com a instauração do concurso público e a renovação dos profissionais através das gerações, o perfil dos policiais municipais tende a mundar.



Esta evolução que já é percebida anuncia a vitória dos ‘flics’ sobre os ‘bobbies’; a preocupação em servir a colevidade local parece dar lugar ao desejo de se aproximar ao modelo policial dominante representado pela Polícia Nacional. O risco seria então das polícias municipais acabarem perdendo importância em seu território. O desafio para eles é conseguir combinar o exercício de seus novos poderes à sua vocação original de proximidade, para oferecer um serviço policial de boa qualidade.



Em que medida a doutrina de sua função é orientada para a prevenção ou para a repressão?



É o prefeito que define localmente a doutrina da sua função, fixa os objetivos e comanda a Polícia Municipal a sua maneira, dentro dos limites do arcabouço jurídico. É ele que, por exemplo, decide colocá-los ou não a serviço de controle de velocidade, designa-os ou não para trabalhar à noite, e ainda estabelece se portarão armas ou não (após acordo preliminar do prefeito). Em 2005, segundo números oficiais, mais da metade dos efetivos das políciais municipais portavam armas. Dentre estes, menos da metade dispunha de revólveres, e os outros usavam apenas cacetetes, ou flashballs 5.



Qual a influência do governo federal nas políticas em nível municipal?



A Lei de 15 de abril de 1999 relacionada às polícias municipais esclareceu as suas competências ou âmbito de intervenção, precisou as modalidades de armamento e reforçou os mecanismos de seu controle. O Estado tem um papel de demarcação jurídica em nível nacional. Também é verdade que em nível local é o prefeito que determina a política de segurança e as grandes linhas de ação da Polícia Municipal. Os representantes do governo federal num território específico podem certamente exercer pressões sobre as comunidades locais.



O que as pessoas sabem em geral a respeito das polícias municipais? Será que elas foram um fator importante nas recentes eleições municipais?



A maior parte das pessoas não percebe a diferença entre a Polícia Municipal, a Polícia Nacional e a Gendarmerie. Dito isso, os policiais municipais usam a partir de agora uniformes específicos e veículos com decalques distintos daqueles utilizados pelos policiais nacionais e policiais militares, o que contribui para esclarecer as coisas.



Quanto aos fatores políticos ligados às questões de segurança em geral e à Polícia Municipal em particular, eles são significativos, mesmo que recentemente tenham sido menos centralizados do que durante as eleições municipais e presidenciais de 2001 e 2002. Assim, certos candidatos à prefeitura fazem da polícia municipal um dos temas centrais de suas campanhas, prometendo por exemplo um aumento dos seus efetivos ou ainda a criação de brigadas eqüestres ou em VTTs 6.



Traduzido por Verônica Barbosa



1 Nota tradução: a police de proximité na França tem como pilares a prevenção (garantia dos direitos do cidadão), a proximidade (relacionado ao modo de intervenção, mas próximo dos cidadãos) e a cooperação, que implica uma parceria entre as autoridades locais, nacionais, o setor privado e o as organizações civis. No Brasil, esta polícia estaria próxima da polícia comunitária.

2 Nota tradução: a théorie des vitres cassées se refere a uma teoria das ciências sociais segundo a qual pequenas deteriorações do espaço público suscitam um desgaste da qualidade de vida e das situações humanas ligadas a ela.

3 Nota tradução: Polícia Civil subordinada ao Estado (Police Nationale).

4 Nota tradução: Polícia Militar subordinada ao Estado (Gendarmerie).

5 Nota tradução: arma tipicamente francesa para defesa, não letal.

6 Nota tradução: Vélo Tout Terrain, bicicletas utilizadas em vários tipos de relevo (mountain bike)


Comunidade Segura.

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