sábado, 19 de julho de 2008

Entrevista- Deodato Rivera

A lei que nasce do povo deve ser abraçada pelo povo.

Há 18 anos, o filósofo e cientista social Deodato Rivera participou do nascimento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que preencheu um vácuo na legislação nacional e criou um marco legal alinhado com a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela ONU no mesmo ano.



Segundo Deodato, a primeira lei regulamentadora da Constituição "foi um grande êxito de articulação". O Estatuto é uma lei inovadora porque porque nasceu da própria sociedade, não foi escrita por legisladores. Uma vitória com aspectos que às vezes passam despercebidos. “Antes do ECA havia 400 mil crianças presas em todo o Brasil, por pobreza. Hoje são pouco mais de 16 mil,” lembra Deodato.



Em entrevista ao Comunidade Segura, Rivera fala da vitória que foi passar a lei e de como ela prevê direitos, mas também deveres: resta a obrigação sobre as famílias, comunidades e ao Estado de proteger a criança. O filósofo fala do papel estratégico de educadores e comunicadores e descreve o que chama de trilogia perversa que age contra sua implementação, e compara esse lento processo com a erradicação da escravidão.



Como foi a experiência de participar da elaboração do ECA?



A lei é fruto de uma grande mobilização social, nacional, organizações, pessoas, instituições públicas e privadas, líderes e liderados de vários tipos de organizações, governo federal, igrejas, sociedades e movimentos como a Frente Nacional de Defesa da Criança, criada especialmente para introduzir na Constituição o novo direito da criança.



Qual foi o papel desses personagens?



O artigo 227 foi escrito por cidadãos, que enviaram uma emenda popular à Assembléia Constituinte, que a acolheu. Veja bem, foi escrito por gente do povo, através do apoio de seus representantes... não foi redigida por deputados e senadores.



Logo depois, no bojo deste movimento veio a idéia de que a lei regulamentadora desse direito também poderia ser feita pelo povo. Juristas, pedagogos, assistentes sociais se uniram - éramos 10 ou 12 em São Paulo - e por mais de um ano trabalhamos elaborando o anteprojeto.



Qual foi o processo no Congresso?



Esse projeto foi entregue ao Congresso Nacional simultaneamente nas duas casas (Câmara e Senado), para que tramitassem simultaneamente. Foi a primeira lei regulamentadora da Constituição, foi um êxito de articulação total. Depois, uma vez que existia a lei, veio o mais difícil, que é fazer a lei vingar.



Infelizmente, hoje se fala em aumentar a criminalização do jovem, na contramão do ECA. Como o senhor vê isso?



Isso é resultado de anos e anos de inconsciência. É preciso uma mobilização do poder público. Felizmente, esse presidente da República disse que vetaria a lei sobre redução da maioridade penal se fosse aprovada. O presidente, os deputados, os senadores, os prefeitos não são eternos, dependem de eleição. Os educadores e os comunicadores têm uma importância estratégica fantástica para mobilizar o novo olhar sobre a sociedade. É um olhar equivocado que leva a estas posições retrógradas.



Mas o senhor não vê uma ameaça à lei?



Esse fenômeno é reversível. Essa consciência pode ser trabalhada se houver vontade social. Mas isso não se faz através de propaganda maciça, é no plano pessoal.



A lei coloca responsabilidade sobre os cidadãos?



É aquela série que está no artigo 227 da Constituição: é dever da família; quando ela falha, da sociedade; quando esta falha, do Estado. Há níveis de responsabilidade, os mais altos estão no poder público. Os mais altos, no entanto, ainda estão de costas.



A lei é falha em relação à prostituição infantil?



Não só a proíbe como penaliza os exploradores. O que há é uma negligência social. Se formos aos grandes hotéis, nas avenidas principais, vamos ver crianças se prostituindo. Elas têm direito à proteção, não é culpa delas. Os proprietários de estabelecimentos públicos onde ela ocorre têm que ser presos, multados etc.



Houve a seu ver uma queda na atenção à criança nos últimos 50 anos?



Há meio século tínhamos pobreza mas muito pouca miséria, a pobreza pode não ser degradante. Os pobres no meu tempo de menino não tinham o estigma na miséria, a sociedade era menor, havia a solidariedade social.



A sociedade absorvia os excluídos por acidente, por morte por alcoolismo. Essa mudança é uma decadência, é degradação. Podemos julgar uma sociedade com base em como ela cuida ou não dos mais vulneráveis, dos idosos, dos enfermos, dos doentes mentais, dos jogados na tragédia da prostituição, das crianças desprotegidas.



O senhor mencionou a trilogia perversa...



São três princípios perversos que dirigem a nossa sociedade: o ‘faz-de-conta’, por parte dos responsáveis pelas políticas públicas. O 'faz-de-conta que estou cumprindo o meu dever, está na Constituição'. Depois tem o ‘tanto faz’, que é a atitude que reina nas organizações, nas empresas, nas instituições sociais. 'Tanto faz desde que eu proteja o meu, eu vou é cuidar do meu filho'.



E, mais perversamente ainda, por parte dos mais poderosos, é o 'que se danem'. Eles sabem o que está acontecendo, mas desdenham, não consideram que sua missão como cidadãos é contribuir para que isso acabe - e o resultado é isso, essa geléia, essa coisa feia, dolorosa, que você não sente segurança para sair na rua com seu filho, pode receber uma bala do policial mal-formado, bala perdida, essa sensação de que qualquer coisa de ruim pode acontecer a qualquer momento.



Então a mudança que precisa ser feita é de mentalidade?



Isso é trabalho para os educadores e os comunicadores. É o da ciência e consciência, fazer o trabalho de formiguinha para contaminar o organismo social desta esperança louca de que esse país pode ser uma nação digna. Eu não acredito nisso como utopia, eu vejo isso como uma tarefa.


Comunidade Segura.

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