domingo, 6 de julho de 2008

A criminalização do mundo digital

Copiar e colar textos, queimar CD-ROMs ou DVDs, transformar CDs de música em arquivos mp3, gravar um filme locado para assistir mais tarde.

Tarefas como essas são comuns no dia-a-dia dos usuários de computador. Muitas delas, porém, são consideradas ilegais.

Nem só isso: há movimentação, em vários países, para aumentar ainda mais a proteção digital aos direitos autorais.

E o Brasil não fica atrás. Tramita no Senado um projeto de lei sobre crimes eletrônicos, ou cibercrimes, que pode transformar em criminosos os internautas que baixam e trocam arquivos sem autorização do titular.

Pela redação do projeto, há margem até para que o desbloqueio de celulares seja considerado crime. A última quinta-feira foi o prazo final para emendas ao projeto no Senado.

O projeto agora vai a votação, na qual será possível apenas o veto integral, ou de quaisquer de seus artigos. Não há mais possibilidades de alterações. Caso haja aprovação no Senado, o projeto seguirá para a Câmara dos Deputados, onde também somente caberá veto ou aprovação.

Porém, seis professores da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV) divulgaram um parecer conjunto, durante a última semana, no Rio de Janeiro, afirmando que os artigos 285-A e 285-B do projeto, que tratam dos crimes contra a segurança de sistemas informatizados, atingem ações triviais, praticadas por milhares de pessoas, na internet, e criam um instrumento de “criminalização de massas”.

América do Norte

O debate em torno do assunto é amplo em países como os Estados Unidos ou o Canadá, onde leis polêmicas em torno do assunto vigoram ou estão em vias de entrar em vigor. O DMCA (Digital Millennium Copyright Act), vigente nos EUA desde 1998, freqüentemente é alvo de discussões. Já no Canadá, são grandes os protestos, via internet, contra a versão canadense do DMCA, que está sendo estudada pelo parlamento.

No Brasil, a questão é pouco discutida. Mas há motivos de sobra para o debate. “Nossa lei de direitos autorais está longe de ser adequada no meio digital”, afirma o professor Pedro Paranaguá, da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV, mestre em Direito da Propriedade Intelectual pela Universidade de Londres e também coordenador do projeto A2K Brasil, que visa incentivar a discussão sobre propriedade intelectual, com destaque ao acesso ao conhecimento.

Ele é um dos juristas que divulgaram o parecer sobre a lei brasileira. O debate, para ele, pode ser benéfico, no sentido de criar flexibilidade para vários tipos de casos. “Hoje somos todos infratores, desde nossos filhos até nossos pais, tamanha a restrição da lei”, diz Paranaguá.

O advogado curitibano Omar Kaminski, especialista na área de informática e novas tecnologias, tem opinião parecida. “Estamos atravessando um momento de novas definições, de uma nova realidade.”

Para ele, estamos diante de um verdadeiro cabo-de-guerra: “De um lado, os jovens desconhecem ou ignoram as questões de direitos autorais, ‘fazendo a festa’ e baixando músicas, textos, softwares, etc. De outro, as gravadoras tentam forçar o cumprimento das leis com iniciativas bastante severas. E no meio termo, o direito à inovação e de acesso às informações sofrem ameaças reais”.

Leis no Brasil já são rigorosas

Para ambos os especialistas, as leis brasileiras já são bastante rigorosas. Paranaguá diz que a lei autoral do Brasil é uma das mais restritivas do mundo. “Apesar da Organização Mundial do Comércio (OMC) autorizar várias flexibilidades, muitas delas não foram implementadas, principalmente por pressão da indústria do conteúdo.”

O especialista da FGV é enfático: “Nós, brasileiros, violamos direitos autorais no ambiente digital a todo instante - muitas vezes sem saber” (veja alguns exemplos no box).

Kaminski também ressalta a dificuldade de se cumprir a legislação brasileira na área.

“A regra é sempre pedir autorização ao autor ou detentor dos direitos autorais. Isto beira o inviável.” Ele aponta que a lei até abre exceções, mas as permissões “não são suficientes para livrar o usuário comum de se tornar senão um criminoso, um violador de direitos autorais”.

Exceções

Mas o advogado lembra que nem toda cópia digital configura violação. “Em vários casos o autor permite que o usuário ‘baixe’, copie e distribua os arquivos”, diz Kaminski. Em alguns, a exigência é que a fonte seja citada, em outros, que não haja alteração e, em alguns, não há restrição alguma.

Há casos, porém, que a cópia é praticamente impossível de ser feita, devido a bloqueios eletrônicos contidos nos arquivos (chamados de DRM - Digital Rights Management -, ou “gerenciamento de direitos digitais”). Há situações em que a simples violação de tais dispositivos é considerada crime.

Paranaguá lembra que há iniciativas, inclusive do Poder Público, no sentido de flexibilizar a questão. “Nosso Ministério da Cultura tem feito excelente trabalho”, diz. “E nós do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV do Rio estamos trabalhando em conjunto com eles para dar subsídios para que o governo modifique nossa lei, de forma a trazer mais equilíbrio.”

Kaminski também pensa no mesmo sentido. “Torcemos que as leis possam acompanhar a dinâmica realidade das novas tecnologias, e não andar vários passos atrás.” Ele destaca o papel da internet, como veículo para manifestações e reações, e também de acompanhamento de novos projetos de lei que possam prejudicar o direito à inovação. (HM)

Exemplos comuns de violações de direitos

DVDs: Caso você alugue um DVD e não tenha tempo de assistir ao filme antes de devolver, não poder copiar seu conteúdo para assistir num outro horário.

Livros: Uma bibliotecária não pode, por exemplo, digitalizar um livro inteiro, para fins de manutenção, mesmo que o livro esteja sendo devorado por cupins ou caso esteja mofando.

Se um aluno da rede pública de ensino quiser copiar metade de um livro, para fins educacionais, não poderá fazê-lo, mesmo que com a renda familiar seja literalmente impossível comprar o livro.

LPs: Caso você tenha algum LP antigo e queira digitalizá-lo para escutar em seu tocador digital, não poderá fazê-lo.

TV: Se enquanto você lê este artigo está passando sua novela predileta na TV, você não poderá programar um aparelho para gravar a novela para que você possa assistir mais tarde.

eBooks: Se um deficiente visual quiser desbloquear um livro eletrônico, para retirar a trava anticópia com o fim de que um software faça a leitura em voz alta do livro, essa pessoa estará infringindo dispositivo da lei brasileira que impede a quebra de sistemas anticópia.

Legislação canadense causa polêmica

Você gostaria de ter o seu laptop vasculhado por fiscais, em busca de arquivos piratas, em pleno aeroporto? Tudo indica que os canadenses não. Quem acompanha a blogosfera internacional certamente já se deparou com discussões a respeito do projeto de lei chamado de DMCA (Digital Millennium Copyright Act) canadense que, entre outras questões, autoriza a tal busca. O projeto também tem sido bastante criticado no meio acadêmico, em jornais e em associações de classe do país.

Para o professor Pedro Paranaguá, da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV, as críticas têm motivo: “A proposta traz dispositivos extremamente restritivos e contrários ao interesse público de acesso ao conhecimento. Os interesses da indústria do conteúdo ficaram acima dos interesses do público em geral, e até mesmo dos autores”, explica.

Entretanto, Paranaguá aponta “alguns poucos pontos” que acabaram sendo bem-vindos. Um deles é o sistema notice-and-notice para provedores de Internet, considerado uma novidade.

Ele explica que no sistema, caso algum titular de direitos autorais se sentir prejudicado por determinado conteúdo autoral divulgado em um provedor de internet, o titular do direito deve enviar uma notificação ao provedor que, por sua vez, deverá notificar o suposto infrator. Caberia a este último decidir se retira ou não o conteúdo. E a questão pode ir ao Poder Judiciário, caso o titular entenda que esse seja o melhor caminho.

“Esse sistema é muito mais eficaz e justo do que o notice-and-take down do DMCA norte-americano, através do qual o provedor deve retirar do ar um conteúdo que supostamente infringe direitos autorais, meramente porque alguém lhe enviou uma notificação”, afirma. “Esta é a talvez a melhor contribuição do DMCA canadense, uma vez que não inviabiliza economicamente a internet no Canadá”, conclui.

Outros benefícios

Mas ele lembra, também, que há outros benefícios aparentes, que acabaram tornando-se ineficazes no projeto. Ele dá exemplos. “Há autorização para gravarmos um programa de TV para assistirmos em outro dia - o chamado time-shifting -, e para convertermos uma música de formato analógico para digital. Contudo, há várias restrições a tais autorizações, além de estarem sujeitas aos sistemas anti-cópia (os chamados DRM ou TPM).”

Assim, mesmo tendo permitidas, algumas ações que já fazemos no dia-a-dia (“em infração à lei”, ressalta o professor), serão ineficazes se houver um sistema anticópia que as impeça. “E se alguém desbloquear essas travas, estará infringindo a lei, mesmo que a mesma lei autorize alguns atos”, aponta.

Assim, práticas corriqueiras, como “desbloquear um DVD de uma região que não seja a sua para assistir na sua área, copiar e colar partes de livros eletrônicos protegidos por DRM ou desbloquear telefones celulares, são proibidas por lei”.


O Estado do Paraná.

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