sábado, 5 de julho de 2008

Artigo: Um crime para comentar e um samba para distrair

É notável o fascínio que o tema da segurança pública exerce sobre as pessoas. Chico Buarque, um dos grandes cronistas de nossa vida cotidiana, já registrava o fato em 1971, alinhando um crime para comentar à piada no bar, ao futebol para aplaudir e ao samba para distrair, em “Deus lhe pague”.

De lá para cá, em 37 anos de história, assistimos a redemocratização do País e a promulgação de uma nova Constituição, que muito avançou no reconhecimento de direitos e garantias formais. No entanto, após a eleição de três Presidentes pelo voto direto, nos confrontamos com o diuturno desafio de elevar a democracia eleitoral brasileira para o patamar de uma democracia de cidadãos.

Esse amadurecimento democrático, para além do processo eleitoral, reclama o resgate da credibilidade do Estado, com o fortalecimento e aperfeiçoamento das instituições públicas, a afirmação dos direitos humanos, a ampliação do acesso à justiça e a intransigente defesa da liberdade de imprensa, dentre tantas outras medidas.

A permanente discussão sobre os contornos das políticas de segurança pública, que deve constituir um dos grandes pilares do Estado, e representa das mais significativas demandas da população brasileira, se insere nesse contexto. As políticas tradicio­nais de segurança, que, via de regra, têm se resumido ao investimento dos recursos no aparelhamento material das polícias, não têm se mostrado eficazes e justas, e merecem uma séria reavaliação. Evidente que a estruturação material e de recursos humanos nas polícias é imprescindível, mas certamente não exaure a construção de uma política de segurança adequada.

O planejamento de tal política pública, bem como seu monitoramento e avaliação, requerem a construção de um sistema estatístico nacional, com indicadores desenvolvidos de forma participativa e transparente, de molde a propiciar a otimização dos limitados recursos públicos que devem fazer frente a tantas demandas num país de tantas desigualdades.

A ampliação e contextualização do debate, com a decisiva participação dos veículos de comunicação também é medida que se impõe. A imediatidade e abrangência das notícias propiciada pelo fenômeno da globalização e pelos incríveis avanços tecnológicos verificados no campo da comunicação trazem como conseqüência uma redobrada responsabilidade dos órgãos de imprensa no tocante à cobertura jornalística nas áreas de justiça e segurança pública.

Assistimos recentemente, com muita apreensão, a cobertura jornalística do caso Isabela. Por semanas a fio, os principais veículos de comunicação do País rechearam suas páginas e seus minutos com matérias puramente sensacionalistas e invasivas à privacidade de pessoas que até então sequer haviam sido formalmente acusadas de um crime. O necessário sigilo das investigações foi vilipendiado e o picadeiro que se armou em torno do episódio foi diretamente responsável pelos atos de hostilidade que a turba perpetrou contra o casal que posteriormente foi denunciado pelo homicídio de Isabela. E a própria decretação da prisão dos denunciados parece vir escorada apenas e tão-somente no clamor social, que definitivamente não se confunde com o abalo à ordem pública alçado pela legislação processual penal como um dos requisitos da prisão preventiva.

O dever de informar, na sua real extensão, requer o correto enquadramento dos fatos em seu contexto, bem como o dimensionamento do impacto das medidas propostas para fazer frente ao fenômeno da criminalidade e da violência. Deste modo, a cobertura sensacionalista de eventos que não representam o padrão da criminalidade em nosso País ou mesmo nos centros urbanos é verdadeiro entrave para o amadurecimento do debate sobre as políticas de segurança pública.

Ressalve-se que a liberdade de imprensa há de ser defendida de forma intransigente, sob pena de nos remetermos aos períodos mais sombrios da história recente, mas tal princípio deve ser compatibilizado com a necessidade de reflexão e auto-regulação dos veículos de comunicação sobre o seu relevante papel no processo de consolidação da democracia.

A disseminação da cultura do medo, alia­da à crise de credibilidade que vivenciam as instituições públicas, criam um espaço fértil para a proposição de soluções supostamente mágicas que demonstram baixa eficácia, geralmente relacionadas com a supressão de garantias historicamente consolidadas e com o endurecimento das penas. Assim, a discussão sobre o aperfeiçoamento das políticas públicas, sobre o papel do Estado e sobre as reais causas da violência e da criminalidade cedem espaço a um debate estéril e esvaziado que vê nos meios de coerção o único instrumento apto a reverter esse quadro de insegurança.

A pauta da construção e implementação de uma política de segurança contínua, responsável e que possa trazer resultados efetivos e concretos no combate à criminalidade insere-se no conteúdo do dever de informar, o que deve ser objeto de reflexão no meio jornalístico, sob pena do papel da imprensa, como um dos protagonistas na construção de uma verdadeira democracia de cidadãos, se limitar a fornecer à população um crime para comentar, como um samba para distrair.

Renato Campos Pinto De Vitto
Presidente da Comissão de Justiça e Segurança do IBCCRIM e defensor público em São Paulo.


Boletim IBCCRIM nº 187 - Junho / 2008

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