É notável o fascínio que o tema da segurança pública exerce sobre as pessoas. Chico Buarque, um dos grandes cronistas de nossa vida cotidiana, já registrava o fato em 1971, alinhando um crime para comentar à piada no bar, ao futebol para aplaudir e ao samba para distrair, em “Deus lhe pague”.
De lá para cá, em 37 anos de história, assistimos a redemocratização do País e a promulgação de uma nova Constituição, que muito avançou no reconhecimento de direitos e garantias formais. No entanto, após a eleição de três Presidentes pelo voto direto, nos confrontamos com o diuturno desafio de elevar a democracia eleitoral brasileira para o patamar de uma democracia de cidadãos.
Esse amadurecimento democrático, para além do processo eleitoral, reclama o resgate da credibilidade do Estado, com o fortalecimento e aperfeiçoamento das instituições públicas, a afirmação dos direitos humanos, a ampliação do acesso à justiça e a intransigente defesa da liberdade de imprensa, dentre tantas outras medidas.
A permanente discussão sobre os contornos das políticas de segurança pública, que deve constituir um dos grandes pilares do Estado, e representa das mais significativas demandas da população brasileira, se insere nesse contexto. As políticas tradicionais de segurança, que, via de regra, têm se resumido ao investimento dos recursos no aparelhamento material das polícias, não têm se mostrado eficazes e justas, e merecem uma séria reavaliação. Evidente que a estruturação material e de recursos humanos nas polícias é imprescindível, mas certamente não exaure a construção de uma política de segurança adequada.
O planejamento de tal política pública, bem como seu monitoramento e avaliação, requerem a construção de um sistema estatístico nacional, com indicadores desenvolvidos de forma participativa e transparente, de molde a propiciar a otimização dos limitados recursos públicos que devem fazer frente a tantas demandas num país de tantas desigualdades.
A ampliação e contextualização do debate, com a decisiva participação dos veículos de comunicação também é medida que se impõe. A imediatidade e abrangência das notícias propiciada pelo fenômeno da globalização e pelos incríveis avanços tecnológicos verificados no campo da comunicação trazem como conseqüência uma redobrada responsabilidade dos órgãos de imprensa no tocante à cobertura jornalística nas áreas de justiça e segurança pública.
Assistimos recentemente, com muita apreensão, a cobertura jornalística do caso Isabela. Por semanas a fio, os principais veículos de comunicação do País rechearam suas páginas e seus minutos com matérias puramente sensacionalistas e invasivas à privacidade de pessoas que até então sequer haviam sido formalmente acusadas de um crime. O necessário sigilo das investigações foi vilipendiado e o picadeiro que se armou em torno do episódio foi diretamente responsável pelos atos de hostilidade que a turba perpetrou contra o casal que posteriormente foi denunciado pelo homicídio de Isabela. E a própria decretação da prisão dos denunciados parece vir escorada apenas e tão-somente no clamor social, que definitivamente não se confunde com o abalo à ordem pública alçado pela legislação processual penal como um dos requisitos da prisão preventiva.
O dever de informar, na sua real extensão, requer o correto enquadramento dos fatos em seu contexto, bem como o dimensionamento do impacto das medidas propostas para fazer frente ao fenômeno da criminalidade e da violência. Deste modo, a cobertura sensacionalista de eventos que não representam o padrão da criminalidade em nosso País ou mesmo nos centros urbanos é verdadeiro entrave para o amadurecimento do debate sobre as políticas de segurança pública.
Ressalve-se que a liberdade de imprensa há de ser defendida de forma intransigente, sob pena de nos remetermos aos períodos mais sombrios da história recente, mas tal princípio deve ser compatibilizado com a necessidade de reflexão e auto-regulação dos veículos de comunicação sobre o seu relevante papel no processo de consolidação da democracia.
A disseminação da cultura do medo, aliada à crise de credibilidade que vivenciam as instituições públicas, criam um espaço fértil para a proposição de soluções supostamente mágicas que demonstram baixa eficácia, geralmente relacionadas com a supressão de garantias historicamente consolidadas e com o endurecimento das penas. Assim, a discussão sobre o aperfeiçoamento das políticas públicas, sobre o papel do Estado e sobre as reais causas da violência e da criminalidade cedem espaço a um debate estéril e esvaziado que vê nos meios de coerção o único instrumento apto a reverter esse quadro de insegurança.
A pauta da construção e implementação de uma política de segurança contínua, responsável e que possa trazer resultados efetivos e concretos no combate à criminalidade insere-se no conteúdo do dever de informar, o que deve ser objeto de reflexão no meio jornalístico, sob pena do papel da imprensa, como um dos protagonistas na construção de uma verdadeira democracia de cidadãos, se limitar a fornecer à população um crime para comentar, como um samba para distrair.
Renato Campos Pinto De Vitto
Presidente da Comissão de Justiça e Segurança do IBCCRIM e defensor público em São Paulo.
Boletim IBCCRIM nº 187 - Junho / 2008
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